Ciclo de Incerteza. Eco-92 e
Rio+20 em discussão. Entrevista com Luiz Oosterbeek.
“Precisamos construir instrumentos para
um ciclo de incerteza”, adverte o pesquisador.
Foto: www.galizacig.com
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Entre os dias 03 e 14 de junho de 1992, a Conferência
das Nações Unidas Sobre o Ambiente e o Desenvolvimento reuniu mais de
uma centena de chefes de Estado para debater, propor e estabelecer metas que
levassem em conta uma relação mais harmoniosa entre o homem e a natureza. Um
marco internacional para as discussões sobre ambientalismo, a Eco-92
(ou Rio-92, como também é conhecida) estabeleceu convenções
importantes sobre o clima (Protocolo de Kyoto), a
biodiversidade e a sustentabilidade (Agenda 21).
Vinte anos depois, uma nova conferência da ONU
foi realizada no Rio de Janeiro, a Rio+20.
Para o pesquisador do Instituto
Politécnico de Tomar (Portugal), Luiz Oosterbeek, no
entanto, é “metodologicamente incorreto” comparar os dois eventos em termos
absolutos. Assim, mais do que avaliar se o novo evento foi tão representativo
como o primeiro, é preciso entender: por que a Eco-92 falhou?
Afinal, “o mundo está inegavelmente pior em 2014 do que estava em 1992”.
Em entrevista concedida por e-mail à IHU
On-Line, Oosterbeek reflete que há duas
possibilidades para compreender esta falha: ou se considera que todos os
agentes e governos são incompetentes e mal-intencionados, ou se assume que
existe um erro teórico na primeira conferência. “A Eco-92 ignorou uma dimensão
fundamental: a divergência de interesses históricos das tradições culturais do
planeta e o diferente entendimento que cada uma delas tem de palavras como
sustentabilidade, sociedade ou ambiente. O final do século XX
ignorou as culturas e pensou que elas seriam engolidas pela globalização. O
século XXI está demonstrando, de forma muito dura, que isso foi um erro”.
Para o pesquisador, esta dimensão, por outro
lado, foi reconhecida — mesmo que timidamente — pela Rio+20. O
evento foi bastante questionado por ter falhado em estabelecer metas mais
arrojadas para o enfrentamento das questões ambientais. No entanto, segundo
Oosterbeek, acertou “ao colocar as pessoas no centro da sustentabilidade e ao
assumir que, mais do que metas, precisamos acordar caminhos partilhados”. E
finaliza: “É pouco? Sim. Porém, é muito mais do que desejos generosos mas
irrealistas”.
Luiz Oosterbeek é licenciado em
História pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa,
com doutorado em Pré-História e Arqueologia pela Universidade do Porto.
Atualmente é professor do Departamento de Território, Arqueologia e Patrimônio
do Instituto Politécnico de Tomar, Secretário-Geral da União
Internacional das Ciências Pré-Históricas e Proto-Históricas e
Vice-Presidente de HERITY International; integrou a área de
Ciência e Sociedade do programa CYTED. É diretor do Museu
de Mação e presidente do Instituto Terra e Memória. É
autor de diversas obras, entre elas Arqueologia, patrimônio e gestão do
território (Erechim: Habilis Editora, 2007) e Arqueologia
trans-atlântica (Erechim: Habilis Editora, 2007).
Luiz Oosterbeek estará
participando do III Congresso Internacional de Direito Ambiental e
Desenvolvimento Sustentável, a ser realizado em Belo Horizonte,
nos dias 10 a 12 de setembro, na Escola Superior Dom Helder Câmara –
ESDHC, organizado pelo Instituto Socioambiental Dom Helder.
Confira a entrevista
Foto: 1.bp.blogspot.com
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IHU On-Line – A Eco-92 é tida como um
marco histórico nas discussões sobre a cultura socioambiental no cenário
internacional. Você acredita que a Rio+20 teve a mesma representatividade? Por
quê?
Luiz Oosterbeek – É sempre
anacrônico, metodologicamente errado e, sobretudo, intelectualmente frágil,
comparar em termos absolutos eventos extraídos de seus contextos. A Eco-92 foi
de fato um evento muito marcante, que culminou mais de duas décadas de
crescente afirmação da chamada “agenda ambiental” e se
beneficiou do otimismo, um pouco apressado e ingênuo, resultante da queda
do Muro de Berlim. A conferência cuidou de estabelecer metodologias e
de estabelecer metas, considerando o planeta no seu todo. Acertou bastante em
algumas metodologias (especialmente a Agenda 21, mas importa
lembrar que é depois de 92 que se generalizam os Ministérios de Meio
Ambiente em todo mundo) e falhou em grande medida nas metas.
O que interessa hoje é perceber o porquê desta
falha, pois o mundo está inegavelmente pior em 2014 do que estava em 1992. E
aqui ou se considera que todos os agentes e governos são incrivelmente
mal-intencionados ou incompetentes, ou se assume que talvez existisse um erro
teórico na Eco-92, que aliás já estava na formulação anterior
do chamado “tripé da sustentabilidade”. Na minha opinião, a Eco-92
ignorou uma dimensão fundamental: a divergência de interesses históricos das
tradições culturais do planeta e o diferente entendimento que cada uma delas
tem de palavras como sustentabilidade, sociedade ou ambiente. O final do século
XX ignorou as culturas e pensou que elas seriam engolidas pela
globalização. O século XXI está demonstrando, de forma muito
dura, que isso foi um erro. A Rio+20 teve um mérito:
reconheceu a dimensão cultural, ainda que de forma tímida, ao colocar as
pessoas no centro da sustentabilidade, e ao assumir que, mais do que metas,
precisamos acordar caminhos partilhados. É pouco? Sim. Porém, é muito mais do
que desejos generosos mas irrealistas.
“Não há um paradigma, há vários em conflito, e
infelizmente os que parecem ter mais força agora são os paradigmas anteriores
aos acordos do pós-2ª Guerra”
IHU On-Line – O grande tema da
conferência era “Que futuro queremos?”. No entanto, sem a adesão dos Estados
Unidos e com a supressão de metas mais polêmicas, quais indicativos são
possíveis de se estabelecer?
Luiz Oosterbeek – Sobre a
questão das metas creio já ter deixado claro que não as considero o mais
importante nesta fase, que é uma fase de construção de confiança entre as
partes. Vivemos uma nova grande depressão (ainda que os governos tenham medo de
o admitir) e estamos assistindo a todos os sinais que acompanharam as
depressões anteriores, de 1873-96 e de 1929-47, incluindo as guerras. Pensar
que se pode construir uma agenda de sustentabilidade comum sobre a base de
interesses estratégicos divergentes é uma ingenuidade cara.
Os EUA são essenciais neste
processo, mas o que Obama disse há uns dias sobre o Estado Islâmico,
ao confessar que “ainda” não tem uma estratégia, é algo que muitos governos
poderiam dizer, sobre muitos assuntos — da Ucrânia ao sistema monetário
internacional — e que, obviamente, já não funciona. Os recuos da União Europeia
em muitas matérias, e desde logo o avanço da pobreza e da extrema direita no
velho continente, vêm ajudar-nos a perceber que o problema não se pode resolver
de forma pontual. A Rio+20, ao falar em gestão integrada do
território (GIT), deu um contributo positivo relevante. A questão
agora é como operacionalizar essa GIT, e, na minha opinião, só
há uma forma: a partir do reconhecimento da diversidade cultural. A obsessão do
caminho único, que é uma variante do pensamento único, nunca ajudou a construir
nenhuma parceria e está agora a destruir rapidamente a União Europeia, por
exemplo.
IHU On-Line – Quais são, atualmente, as
perspectivas de futuro vislumbradas internacionalmente? Qual o paradigma que
norteia estas políticas?
Luiz Oosterbeek – Não há um
paradigma, há vários em conflito, e infelizmente os que parecem ter mais força
agora são os paradigmas anteriores aos acordos do pós-2ª Guerra (Ialta,
Bretton Woods, etc.). Vemos renascer a ilusão da força dos antigos
impérios, completamente a contraciclo do ponto de vista da globalização, mas
natural enquanto resposta cultural baseada na desconfiança e no medo. Há
certamente um novo paradigma, que defendo, que é o de uma GIT
que vá integrando as dinâmicas e propicie novas formas de governança. Um
paradigma que assuma que a incerteza é a regra do século XXI,
e que por isso o foco não devem ser as metas (destinadas a falhar) e sim os
mecanismos de parceria, envolvendo países, instituições e pessoas.
Especialmente compreendendo o papel decisivo que as pessoas têm nos momentos de
viragem para o desconhecido, que é o que vivemos hoje.
IHU On-Line – Em tempos em que o
pensamento ecológico, sistêmico e conectivo parece ter se fortalecido bastante,
tanto empírica quanto teoricamente, vemos, por outro lado, que o abismo da
desigualdade nunca foi tão grande. Como atingir a sustentabilidade se a
racionalidade econômica tende à concentração e à segregação?
Luiz Oosterbeek – Não creio que
o pensamento ecológico, sistêmico e conectivo seja hoje mais forte do que era,
por exemplo, no tempo de Kant. É verdade que é maior hoje do que era nos anos
1950 ou 1960, mas também é verdade que já foi maior em 2000 do que é agora em
2014. A fome e a guerra são indutores do isolacionismo, da segregação. E o
niilismo, cultivado por boa parte das elites que fazem opinião, é hoje um
problema dramático.
Há momentos na história em que a racionalidade e
a urgência não estão juntas. Foi assim no início da revolução industrial,
quando a racionalidade promovia a proletarização e a ruína do campesinato, para
potenciar o crescimento econômico (ao qual muito devemos hoje, sendo que o
preço foi pago pelos milhões que na época pioraram de vida). Hoje, a economia
cresce quando a tecnologia retira mão de obra da produção, e por isso vivemos
um dilema: os que se opõem a esse progresso tecnológico não percebem que não é
possível voltar atrás sem que morra pelo menos cerca de um terço da população
mundial de forma violenta; os que apenas apostam no crescimento não percebem
que não é possível mobilizar alegremente milhões de pessoas em nome de um
progresso de que vão se beneficiar, talvez, os seus tataranetos. Especialmente
agora que a natalidade diminui.
O caminho passa de novo pela GIT,
integrando aí um forte investimento social: foi assim que Bismarck
criou o Estado Social e superou a 1ª depressão, e foi assim com o New
Deal e Keynes. Creio que os mais esclarecidos
dirigentes do planeta, no Brasil, nos EUA, na
China ou no Irã, para citar apenas alguns,
percebem isto, embora de formas distintas. Creio que grandes empresários, como Warren
Buffett ou Bill Gates, também o entendem. A escolha,
apesar de tudo, é simples: ou uma GIT que integre a diversidade cultural e
atenda à dimensão social com mais atenção à economia e menos espaço para a
financialização, ou a guerra. Não há terceiro caminho.
“Não creio que o pensamento ecológico, sistêmico e
conectivo seja hoje mais forte do que era, por exemplo, no tempo de Kant”
IHU On-Line – Como promover um
desenvolvimento para a liberdade, e não um crescimento que aprisiona e separa?
Luiz Oosterbeek – A vida tem
contradições, e as palavras têm múltiplos sentidos. Há quem entenda que há mais
liberdade quando se pode dizer o que se pensa, ainda que 25% da população não
tenha emprego; há quem pense que a liberdade é essencialmente o direito
empresarial de cada um; há quem entenda que a liberdade só existe quando pode
ser exercida com base na estabilidade da sua vida e no conhecimento… O
crescimento nunca aprisiona, o que aprisiona é a gestão que se faz desse
crescimento. É muito perigoso o discurso do decrescimento, pois há hoje 7
bilhões de pessoas que precisam comer, e isso só se consegue com crescimento.
Mas o crescimento não basta: é preciso uma redistribuição da riqueza, que vai
ser feita ou por consenso ou de forma violenta. O importante é perceber que não
se pode reduzir um caminho de dilemas a uma sequência de títulos de jornal.
IHU On-Line – Uma das ressalvas que você
faz à Rio-92 foi que ela não considerava a diversidade cultural — visto que
“cultura também é economia”. Qual a importância de considerar este fator?
Luiz Oosterbeek – Há um equívoco
muito grande quando se separa cultura de economia, porque a economia é a
regulação das atividades humanas articulando necessidades com recursos. Ora, as
necessidades são culturalmente percepcionadas (no Brasil deve
haver poucas pessoas com necessidade de comer arroz no café da manhã, por
exemplo), os recursos só são úteis se houver conhecimento para reconhecê-los e
utilizá-los, e tudo isso forma, ao cabo de séculos, o modo de estar de uma
comunidade, ou seja, uma cultura. Quando se olha para Ouro Preto
ou para a Serra da Capivara, ver só a estética desses lugares
não nos ensina quase nada. Importa perceber como se formaram, as razões de
colocar as Igrejas ou a arte rupestre em determinados lugares, e isso significa
entender os processos econômico-culturais. Hoje é a mesma coisa: a opção de
criar uma cidade administrativa em Belo Horizonte, mais perto do aeroporto de
Confins, é uma escolha econômica (em função do projeto de aerotrópole) ou
cultural (quando se cria o circuito de museus da Praça da Liberdade ou se busca
a assinatura de Niemeyer para o novo complexo)? Uma coisa não
se pode distinguir da outra. Quando se separa a economia da cultura (o que é um
fenômeno recente), cria-se um gueto para a cultura e reduz-se a economia a uma
operação de contabilidade e finanças. Esta tem sido a escolha depois de 1970… e
o resultado é visivelmente mau.
IHU On-Line – Como a questão cultural
passou a ser vista após a Rio+20?
Luiz Oosterbeek – Se se
perguntar a grande parte dos dirigentes políticos o que eles pensam da cultura,
talvez eles ainda pensem que são aquelas coisas de que cuidam os Ministérios da
Cultura: as artes, o patrimônio… Mas na medida em que a Rio+20
percebeu a importância da diversidade cultural para a sustentabilidade (nas
declarações sobre a centralidade da pobreza, mas também em eventos como o Humanidade
2012), deu passos no caminho certo. Falta ainda fazer esse caminho, no
entanto, começando por promover projetos integradores de cultura e economia. Há
setores que são mais sensíveis a isso, como o turismo, claro. Mas se pensarmos
na exportação de vinhos do Brasil, é muito claro que ela só se conseguirá
consolidar com uma forte afirmação cultural.
IHU On-Line – O que vem a ser a gestão
integrada e por que ela vem sendo apontada como fundamental para o
desenvolvimento sustentável?
Luiz Oosterbeek – Durante toda a
primeira década do século XXI, em Mação e em diversos cenários se foram
organizando intervenções de GIT, que se apoiam na compreensão
de que conhecimento (do meio ambiente, da tecnologia e dos processos sociais) e
logística (que na verdade é um conhecimento aplicado à equação espaciotemporal)
são as bases de um processo que deve olhar o futuro enxergando os dilemas de
escolha que se oferecem, a cada momento, à sociedade, o que por sua vez
favorece a definição de visões convergentes de médio e longo prazo, e também a
governança. É esse processo que deu origem ao Instituto Terra e Memória,
incialmente constituído na Europa e agora, também, no Brasil.
Gestão Integrada do Território é
o que faziam as sociedades que no passado foram bem-sucedidas. Num ciclo de
mudança sistêmica global, todas as atenções tendem a se concentrar,
alternadamente, em apenas um dos seus vetores: ora o financeiro, ora o social,
ora o ambiental, algumas vezes o econômico, raras vezes o cultural. E todas
essas atenções se vão deslocando de um para outro à medida de suas desilusões,
constatando que não são mais eficazes e suficientes as soluções setoriais de
problemas.
A GIT supera estéreis debates
sobre as opções entre crescimento e desenvolvimento e constrói um quadro de
discussão em que a didática dos dilemas é o elemento nuclear, para a elevação
das competências críticas dos indivíduos, para que estes possam decidir sobre
nosso futuro coletivo. Neste processo, mais do que ambiente, economia ou
cultura, é a palavra território que se torna nuclear, e, num futuro que se
apresenta incerto e inseguro, a concorrência entre territórios e a sua possível
certificação serão certamente realidades.
“Num ciclo de mudança sistêmica global, todas as
atenções tendem a se concentrar, alternadamente, em apenas um dos seus vetores:
ora o financeiro, ora o social, ora o ambiental, algumas vezes o econômico,
raras vezes o cultural”
A maioria das teorias econômicas defende que o
elemento decisivo para o futuro é o crescimento, e que este se apoia,
sobretudo, nos investimentos para esse futuro, como a educação, a tecnologia e
as infraestruturas. Porém, essa visão não considera suficientemente a dimensão
humana nos seus dois eixos fundamentais: cognitivo-temporal (cultura) e
organizativo-espacial (sociedade). É por isso que privilegia uma variável
contínua e não personalizável (o crescimento) sobre uma variável discreta mas
muito mais poderosa e decisiva: a governança. Ora é na dimensão da governança
que de fato se joga o futuro. Precisamos, assim, de uma estratégia que assuma a
governança como preocupação fundamental, e integre as demais dimensões. Falarei
com mais detalhe deste processo, e das equações que podemos usar nele, durante
o III Congresso Internacional de Direito Ambiental e Desenvolvimento
Sustentável, em Belo Horizonte.
IHU On-Line – Deseja acrescentar mais
alguma coisa?
Luiz Oosterbeek - O início do
terceiro milênio está sendo marcado por uma crise global que se exprime em
todas as esferas: economia (reorganização dos mercados, dificuldades do sistema
monetário internacional), sociedade (quebra acentuada da natalidade no planeta,
desemprego estrutural em muitos territórios, crise da classe média no hemisfério
norte), ambiente (crise energética, desertificação) e culturas
(crescente mobilidade por motivos econômicos e de segurança, consequente
questionamento das fronteiras, não apenas socioeconômicas e políticas, mas,
também, identitárias). Precisamos construir instrumentos para um ciclo de
incerteza.
Fonte: IHU On-line
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