segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Proteção das Terras Indígenas (TI) em ‘xeque’.
Abandonados pelo poder público e pelas entidades que deveriam garantir seus direitos, indígenas assumem as trincheiras de batalha para garantir a preservação suas terras, contra a ação de madeireiros ilegais.

No final de agosto o Governo divulgou, depois de mais de três anos de silêncio, os dados da degradação florestal na Amazônia. Superficialmente conclui-se que houve uma queda geral dos índices. Mas uma análise mais apurada aponta para um fato preocupante: 30% do território degradado entre 2007 e 2013 estava localizado dentro de áreas protegidas por lei. Curioso, entretanto, é o fato de que 84% destas áreas estavam localizadas dentro de Terras Indígenas (TI).

O ano passado foi especialmente ruim para os índios brasileiros, com a afirmação de políticas e direcionamentos que contribuíram ainda mais para a deterioração de seus direitos, como a interrupção de demarcações de novas TIs, o abandono dos órgãos responsáveis por resguardar seus interesses, a crescente no número de conflitos por terra, além da irrefreável pressão exercida pela exploração ilegal de madeira.

A criação de áreas protegidas, como Unidades de Conservação e TIs, é um dos mecanismos mais eficientes criados pelo governo para garantir a estabilidade florestal, como recentemente comprovado pelo World Resources Institute. Outro papel fundamental da delimitação destas regiões é proteger as populações locais.

Mas segundo o Degrad (Mapeamento da Degradação Florestal na Amazônia Brasileira), que detecta indícios de degradação e é utilizado como suporte à fiscalização e controle deste processo, entre 2007 e 2013 quase 26% da degradação ocorreu dentro de TIs. Ou seja, neste período foram perdidos 2,630 milhões de hectares de floresta Amazônica que, em tese, deveriam ser protegidas.

Os maiores focos de degradação apontados pelo Degrad estão localizados no arco do desmatamento, principalmente nos estados do Maranhão, Mato Grosso e Pará.
Os maiores focos de degradação foram identificados ao longo do Arco do Desmatamento, principalmente nos estados do Maranhão, Pará e Mato Grosso (© Greenpeace)
Segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT), em 2013, das 34 pessoas assassinadas no campo, 38% eram índios. No mesmo ano, entre as 829 vítimas de violência, como tentativas de assassinato, ameaças, prisões, intimidações e outras barbáries, quase 30% eram indígenas. Além disso, de acordo com dados recentes da ONU, o número de índios detidos no Brasil cresceu 33% nos últimos anos. 

Infelizmente, em 2014 não será diferente, devido ao atual cenário, marcado por mais conflitos violentos relacionados à madeira.

A espera de (mais) uma morte

A falta de credibilidade nas autoridades, que deveriam garantir os direitos e a segurança dos povos tradicionais, tem feito com que grupos indígenas entrem em estado de guerra na defesa de suas terras, a exemplo do que vem acontecendo com os Ka’apor da Terra Indígena Alto Turiaçu, no Maranhão.

Apenas um dia após uma Audiência Pública realizada no Senado, cujo tema central foi a relação da exploração ilegal de madeira com a violência no campo, ocorreu no Maranhão uma operação organizada pelos indígenas com a finalidade de coibir ações recorrentes de madeireiros dentro de suas terras.

A TI Alto Turiaçu é o maior remanescente florestal do que um dia foi a Amazônia Maranhense. Apesar de possuir 30 anos de existência, sua população sofre com ameaças constantes. Até 2012 a TI já havia perdido 44 mil hectares (8,07% do total de sua área), colocando-a na 5ª posição entre as TIs mais desmatadas na Amazônia. Só em 2013 outros 1.113 hectares de floresta desapareceram do mapa. Em termos de degradação, os dados absolutos para o período de 2007-2013 chegou a 5.733 hectares.
Degradação total no Mosaico de áreas Protegidas no período de 2007-2013 (37995 hectares): TI Alto Rio Guamá/PA (14416 ha); TI Ka’apor/MA (5773 ha); TI Awá/MA (714 ha); TI Caru/MA (690 ha) e Rebio Gurupi/MA (16442 ha) (© Greenpeace)
Apesar de denunciada desde 1979 pelo Anthropology Resource Center (Vol. 3, nº 2. 01/12/1979), e por diversas cartas endereçadas ao Ministério Público Federal (2008), à Procuradoria Geral da República e também na Polícia Federal (2010) a exploração madeireira na TI Alto Turiaçú continua.

Em setembro de 2011, três anos antes deste recente conflito, o IBAMA fez uma operação na região aplicando mais de R$ 687,5 mil em multas, onde foram encontrados 20 trabalhadores em condições análogas à escravidão. No dia 16 de maio de 2010 Hubinet Ka’apor, 38 anos, foi brutalmente assassinado por madeireiros. Em março de 2011 mais um assassinato: Tazirã Ka’apor, de 20 anos.

Em dezembro de 2012, segundo dados da Fiocruz, depois da Polícia Federal apreender um caminhão de madeira ilegal em plena operação, com cartões obtidos na Prefeitura de Maranhãozinho que permitiam a entrada na TI, a PF indiciou o então prefeito da cidade, Josimar Cunha (PR), e mais dez pessoas por suspeita de participação das atividades madeireiras. Josimar negou a acusação.

As denúncias continuaram sendo feitas pelos indígenas em 2013. Em janeiro de 2014 um grupo de 10 indígenas que estavam em suas ações de autovigilância foram surpreendidos com tiros que atingiram as costas e as pernas de dois deles, além de a cabeça do cacique da aldeia. No mesmo mês, a pedido do Ministério Público Federal no Maranhão (MPF/MA), a Justiça Federal condenou (processo nº 2008.37.00.005728-5) o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), a Fundação Nacional do Índio (Funai) e a União a implantarem postos de fiscalização para coibir a atividade ilegal de devastação no interior das Terras Indígenas Alto Turiaçu, Awá Guajá e Caru, o que não ocorreu.

Em março outra ação de autovigilância resultou na expulsão de mais madeireiros e em junho de 2014, uma nova denúncia de ameaças envolvendo a participação de políticos de Centro do Guilherme (MA).

Em entrevista ao jornal A Folha de São Paulo (publicada em 10/09/2014), o representante da etnia, Itahu Ka’apor, afirmou que, diante da inércia do governo em protegê-los, os indígenas estão montando e treinando um exército próprio para defender suas terras. “Estamos em guerra. E nós enfrentamos [os madeireiros] mesmo, porque ninguém quer nos ajudar. A gente não aceita mais isso. A Funai nos deixou há meses, então resolvemos agir. Estamos fazendo o que o poder público deveria fazer”, disse à reportagem da Folha.

Ao serem obrigados a adotar táticas de autodefesa, os povos indígenas arriscam suas vidas para garantir a proteção dos seus territórios, diante da inércia do Estado em cumprir sua tarefa constitucional, esses povos estão sujeitos a retaliações como a que vimos contra os Ashaninka, mortos no final e agosto. Tudo isso é amplamente subsidiado pela falta de governança que, se já é ruim nos outros estados Amazônicos, no Maranhão parece ser ainda pior.

Infelizmente esse é o reflexo de uma crise marcada por interesses privados de grupos políticos e econômicos que se infiltram nas mais diversas esferas da máquina governamental, comprometendo o funcionamento de instituições públicas, os interesses coletivos da sociedade e ao próprio Estado de Direito.

“A superação definitiva do desmatamento ilegal e a construção de alternativas viáveis para o desenvolvimento sustentável na Amazônia passam necessariamente pelo fortalecimento da governança, dos indígenas e das populações tradicionais, os principais guardiões da biodiversidade amazônica”, disse Claudia Caliari, da campanha Amazônia do Greenpeace. “Se isso vem ocorrendo nessas áreas, que estão supostamente protegidas, a gente pode imaginar o que está acontecendo nas áreas que não são resguardadas”, completa.

Não podemos esperar o processo se tornar irreversível, a hora de mudar é agora. Cabe ao Governo Brasileiro e a Funai decidirem se esperam pelo pior ou se garantem a efetividade da proteção destas pessoas e suas terras.


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