A utopia é urbana – e a distopia
também: sobre urbanismo ecológico e outros conflitos.
por Pedro
Ribeiro Nogueira, do Portal Aprendiz
Cidade de São Paulo vista do Alto. Foto: Rafael
Neddermeyer/ Fotos Públicas.
Enquanto São Paulo ferve e seca, com racionamento
de água por toda a cidade e umidade do ar a níveis desérticos, em uma sala no
Centro Cultural Vergueiro, na última terça-feira (1410), o “Simpósio
Internacional Urbanismo Ecológico”, organizado pela Harvard University School
of Design, em parceria com a Prefeitura de São Paulo e o Programa Cidades
Sustentáveis, reuniu arquitetos, urbanistas e demais interessados, para
discutir o futuro das cidades e a necessidade de mudanças drásticas na forma
como ocupamos o espaço e utilizamos nossos recursos.
O simpósio compõe o lançamento do livro de mesmo nome em
português (R$ 120, Editora GGilli).
Mas o que seria um urbanismo ecológico? Na abertura
do evento, Mohsen Mostafavi, um dos organizadores da publicação, deu sua
contribuição para a discussão. Decano e professor de Arquitetura na Harvard
Graduate School of Design, Mostafavi destacou algumas palavras chaves que
explicam o conceito.
Antecipar, interagir, colaborar, mobilizar, sentir,
medir, curar, colaborar, produzir, adaptar, incubar e colaborar.
Sim, colaborar aparece três vezes.
Para o pensador das cidades, essa é uma dimensão
que não pode ser negligenciada. “Eu quero deixar claro que estamos imaginando a
cidade como um espaço importante de participação. Precisamos trabalhar juntos e
precisamos dos recursos e conhecimentos da cidade partindo de diversas e
múltiplas perspectivas que se encontram.”
A referência, explicita, vêm do fôlego das ruas
espanholas, árabes, turcas, americanas e brasileiras.
“O espaço público é o primeiro a ser ocupado – veja
a praça Tahrir (Egito), Taksim (Turquia), ou o Zucotti Park (Nova Iorque) – e
têm sido cada vez mais tema de debate e preocupação ao redor do mundo”, avalia,
ao reforçar a importância do espaço público não apenas como um lugar do
encontro, mas também da diferença.
“Temos que valorizar a cidade como um lugar de
conflito, de discordância, por isso as praças têm sido tão importantes para a cidades:
elas são a manifestação da diferença, a visualização do conflito”, afirmou ao
ventilar a ideia de um “urbanismo do antagonismo” e terminar sua apresentação
com um vídeo de dança nas ruas de Oakland, na Califórnia.
Nele, quatro jovens negros ocupam duas esquinas.
Após dois carros policiais passarem e interpelarem os jovens, se inicia uma
encenação de TURF (estilo sincrético de dança surgido nas ruas de Oakland que
bebe do break ao jazz), em memória do irmão de um deles, morto naquela
intersecção. O “corner”, ou esquina, é um lugar tradicionalmente ocupado nos
bairros negros norte-americanos. Um espaço de convívio e tensão – pelo
histórico de violência policial nas grandes cidades americanas e pela falta de
lugares públicos que possam ser ocupados nas regiões mais pobres. Como
resultado, os corners concentram todo tipo de atividade – inclusive as
ilícitas. O vídeo de 2009, analisa Mostafavi, exemplifica essa ideia de espaço
público e apresenta processos de transformações do espaço urbano, de apropriações
subjetivas e emancipadoras.
Mas o que isso tem a ver com ecologia?
Aparentemente, nada. Praticamente, tudo. A ideia de um urbanismo ecológico,
mais do que pensar a cidade como algo isolado e cinza, tenta ver as diversas
matizes de cores da malha urbana. E não apenas o verde. O urbano é entendido
como um ecossistema em constante mutação pela ação humana. Trata-se, então, de
empoderar os cidadãos como agentes dessa mudança.
A proposta é sintetizada pela frase do biólogo e
antropólogo Gregory Batteson, trazida na apresentação de Charles Waldheim,
durante o Simpósio. “Nós não estamos fora da ecologia para a qual planejamos –
nós somos sempre e inevitavelmente uma parte dela. Nisso repousa o charme e o
terror da ecologia.” Ou como afirma Gareth Doherty, que assina o livro ao lado
de Mostafavi, “o ambiente, as relações sociais e a subjetividade humana são
aspectos essenciais de um urbanismo igualitário e sustentável”.
Essa noção – de que pensar a ecologia urbana
transcende o meio-ambiente e nos compõe de maneira integral – está cada vez
mais presente em conversas sobre sustentabilidade, como mostra a reportagem do
Portal Aprendiz sobre a Virada Sustentável. Afinal, os citadinos são os
principais conhecedores e interessados na saúde da cidade. E o urbanismo?
A cidade como condição humana
As ideias de Mostafavi encontraram eco nas falas do
sóciologo urbano Carlos Vainer, carioca e professor da Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ). Em sua provocativa apresentação, o docente elaborou sua
visão sobre a cidade como condição humana.
“O filósofo alemão Ernst Cassirer afirma que pensar
o futuro faz parte da condição humana e eu vejo a cidade nesse mesma chave:
como a mais plena realização da sociabilidade. A utopia, quando imaginamos o
futuro, é urbana”, ressalta, evocando os desenhos de cidades futuristicas.
Dentro do campo das utopias, Vainer localiza dois
polos: a utopia igualitária – imaginada pelos socialistas utópicos do séc. 19 –
e a cidade silenciada e autoritária – pensada pelos regimes fascistas do século
passado . E localiza o presente no que denomina “urbanismo pós-moderno”, que
seria a cidade-empresa, cidade-competitiva, cidade-privatizada, na qual o
Estado abandona suas pretensões de modificiar a cidade e as transfere para a
iniciativa privada, como aconteceu em São Paulo e no Rio de Janeiro com as
parcerias público-privadas e as concessões urbanísticas.
“Nessa cidade, onde se propugna a morte das
utopias, a negociação substitui a cidade coletiva. Trata-se de prevernir danos
e evitar o conflito – que é pensado como uma dinâmica entrópica, ou seja, um
gasto de energia. Evitar o conflito é mobilizar para imobilizar”, reflete
Vainer.
Para o sociólogo, isso acontece quando o cidadão
não é visto como um coletivo, mas como um indivíduo social. “Enquanto o valor
regente da urbanidade for a competividadade mercantilizada e mercantilizadora,
o direito à cidade é negado e a urbanidade é destruída.”
Apesar do pessimismo, ele observa a emergência de
novas utopias nas praças e ruas. “Nos espaços públicos, as pessoas renegam a
cidade mercantilizada e os citadinos dialogam entre si e não com o grande
capital. Observamos então as batalhas das cidades: da competitiva contra a do
bem-viver, da empreendedora contra a justa, da smart contra a sábia, da cidade
do espetáculo contra a da festa”, finaliza.
“É sempre muito cedo ou tarde demais para pensar no
futuro das cidades”
Se São Paulo fosse uma pessoa, ela estaria inchada
e obesa. Sofreria de insuficiência renal pois não sabe o que fazer com sua
água. Bronquite crônica pelo ar que respiramos. Diarreia por não termos
resolvido o saneamento, um caso grave de diabetes e uma disfunção cognitiva por
negar que tudo isso está acontecendo. Além de uma impotência enorme para lidar
com isso. “Mas pelo menos, é mais fácil um paciente se recuperar no UTI que na
Igreja”, brincou, arrancando risos da plateia, o patologista de doenças
urbanas, Paulo Saldiva, da Universidade de São Paulo (USP).
A realidade paulistana atual é uma metáfora precisa
(ver box) da cidade anti-ecológica, competitiva, destrutiva e destruidora. Sua
situação – à beira da calamidade – sobrevoou e pontuou grande parte das falas
dos palestrantes, na difícil tarefa de imaginar outra cidade em meio ao caos
urbano iminente. Ou como sintetizou o físico indiano Homi Bhabha, lembrado por
Waldheim, “é sempre muito cedo ou tarde demais para pensar no futuro das
cidades”.
E o que nubla a visão do horizonte? Para a
urbanista Cecília Polacow Herzog, da Pontíficia Universidade Católica do Rio de
Janeiro (PUC-Rio), vivemos hoje em cidades vulneráveis à beira da incerteza. O
principal obstáculo para um urbanismo ecológico, de acordo com ela, é a
orientação economicista e voltada ao lucro, que faz surgir empreendimentos
imobiliários a qualquer custo e que deixarão marcas indeléveis no tecido
metropolitano.
“Perdemos serviços ecossistêmicos, fragmentamos
nossos territórios assim como fizemos com o nosso conhecimento. É necessário
transformar as cidades e torná-las resilientes. Natureza não é opcional.
Precisamos sair do cinza da geometria de controle cartesiana, reativa à crise,
com programas emergenciais, para algo orgânico e rotineiro”, defende.
A cidade, acredita ela, é o principal habitat da
humanidade. E a ciência de pensá-las, declarou Ermínia Maricato, urbanista da
Universidade de São Paulo (USP) durante o evento, não deixa dúvidas: “O
urbanismo ou é ecológico ou não é”.
Fonte: Portal Aprendiz
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