Com nascente seca, população teme
morte do Velho Chico.
Por Paula Góes, do Global Voices
A chuva que caiu na Serra da Canastra no final de
outubro não
foi suficiente para alimentar as esperanças de que a nascente do Rio São Francisco, que secou em setembro pela
primeira vez na história, se recupere. Mudanças climáticas, estiagem
prolongada, incêndios e devastação gradativa do ecossistema da região são
algumas das causas da morte do minadouro do rio, um dos mais importantes de
toda a América do Sul. Esta nascente era, até então, considerada
perene.
Na cidade de Iguatama, localizada no oeste do
estado de Minas Gerais e primeira a ser banhada pelo São Francisco, o rio
já está tão seco que os
pescadores estão largando o ofício. Três Marias, a primeira
represa do rio, está operando com 3,5% do seu volume normal e precisou
ter a sua vazão reduzida. Segundo avaliação do Comitê da Bacia Hidrográfica
do São Francisco (CBHSF), se não
começar a chover, a previsão é de que um trecho de 40 km de rio após a barragem
seque completamente. Em Sobradinho, a segunda represa do Rio São Francisco,
localizada na Bahia, o volume segue em 18%.
Com 2.863 km, maior do que a distância entre as
cidades europeias de Madri e Berlim, o São Francisco banha cinco estados
brasileiros – Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe – abrangendo
504 municípios e formando uma das principais bacias hidrográficas do
país. Apelidado carinhosamente de Velho Chico, é também conhecido como o
“rio da integração nacional”, por unir diferentes climas e regiões e ligar o
Sudeste e Centro-Oeste ao Nordeste, e o “mais brasileiro dos rios”, por nascer
e desaguar em território nacional.
Embora o rio ainda esteja correndo devido aos
seus vários tributários, a seca da sua cabeceira é considerada um dos sintomas
da grave
crise hídrica pela qual o Sudeste vem passando. Para o sociólogo Roberto
Malvezzi, a seca da nascente representa um luto
histórico para o rio São Francisco e seu povo.
Nem o pior dos vaticínios nos anteciparia essa
notícia. Agora não é mais previsão dos catastrofistas, dos apocalípticos, de
ambientalistas sectários. Estamos diante do fato.
O Velho Chico morreu de sede, segundo o
jornalista Carlos Costa, que disse ter sido “triste demais” ver a nascente
seca:
Ele não perecerá por completo porque também
recebe água de outros afluentes, mas sua nascente já morreu e está cercada de
pedras como se fosse em volta de uma sepultura. Um quadro triste! O “Velho
Chico” morreu de sede em sua nascente, como outros rios poderão morrer também
se eles não forem tratados com carinho, respeito e responsabilidade como se
fosse mais um ser vivo, como na verdade é.
Da Bahia, o blogueiro Edivaldo Braga lista alguns
dos problemas que assolam o Velho Chico, e diz que
ele pede socorro:
O Velho Chico está agonizando e prestes a morrer.
A ponte que liga algumas cidades encontra-se completamente descoberta e
denuncia o sério problema. A morte do rio significa o fim de muitos
ribeirinhos.
O São Francisco é a única fonte de água doce para
muitas populações ribeirinhas, que também dependem dele para pecuária, agricultura
e transporte, via navegação. O blog e as fotos de Markileide Oliveira mostram como
a vida está prejudicando a locomoção dos moradores da cidade de Xique-Xique,
Bahia, que se abastece de um braço do Velho Chico:
O Rio São Francisco vem enfrentando uma das
maiores secas da sua existência, as várias cidades das suas margens sofrem com
a falta de água. São inúmeros os relatos dos ribeirinhos, que contam as dificuldades
enfrentadas no seu cotidiano. Muitos caminham a pé pelo leito do rio até
chegarem à cidade e fazem o mesmo trajeto de volta para casa. Alunos das redes
públicas chegam a usar três transportes para ir à escola, acordam às 5h para
poder assistir a segunda aula por que a primeira não é possível. Os
ribeirinhos estão aportando os seus barcos nas margens de um rio seco. Sem
profundidade, as barcas de médio porte não conseguem navegar e os barqueiros
buscam outras formas de sobrevivência, pois o transporte coletivo ficou
impossibilitado. Os ribeirinhos estão substituindo os barcos por
bicicleta, carroças, carrinhos de mão, entre outras possibilidades de
locomoção.
Morte lenta e transposição
A devastação do entorno do São Francisco não é um
problema recente e há anos vem sendo documentada tanto por especialistas quanto
cidadãos. Em 2009, João Carlos Figueiredo, autor dos blogs Meu Velho Chico e Meu Velho Chico: memórias de uma
expedição solitária (também disponível no formato de livro
eletrônico), percorreu de canoa toda a extensão do rio em cem dias, remando
sozinho desde sua nascente, na Serra da Canastra, em Minas Gerais, até a sua
foz, em Piaçabuçu, Alagoas. Sobre a notícia da seca na nascente, ele
diz:
Estamos chegando, rapidamente, no limite de
resiliência (capacidade de recuperação) de nosso Meio Ambiente. Passado esse
limite, o Brasil, gradualmente, se transformará em uma gigantesca savana seca e
estéril. Regiões desérticas substituirão as florestas e as nossas gigantescas
bacias hidrográficas. E até mesmo os ignorantes donos do agronegócio verão seus
latifúndios se transformarem em terra seca e inútil para a lavoura. Será esse o
nosso destino final?
Lançado em 2012, o livro “Flora
das caatingas do Rio São Francisco: história natural e conservação” traçou
o mais completo perfil sobre a vegetação do Velho Chico, concluindo que a sua
extinção é “inexorável”. Resultado de quatro anos de pesquisa e mais de 340 mil
quilômetros percorridos por mais de cem especialistas de todo Brasil, o livro
alertou para o perigo do projeto
de transposição que pretende levar as águas do rio para os
sertões, causando danos ainda maiores na caatinga, único bioma
exclusivamente brasileiro, já extremamente ameaçado.
A obra de transposição do Rio São Francisco,
que já custou R$ 8 bilhões e ainda
não está pronta, destinou menos
de 10% de seu valor à revitalização de nascentes e matas ciliares.
Segundo os críticos do projeto, a transposição deve beneficiar mais o
agronegócio do que as populações carentes ou o meio ambiente. Roberto
Malvezzi alerta que
o processo pode inclusive acelerar a morte do São Francisco, que já é
praticamente um rio intermitente:
Hoje ainda se fala na transposição, ela continua
na mídia, por muitos considerada ainda como a redenção do semiárido. Vamos
respeitar a ignorância dessa afirmação, afinal o Nordeste e o semiárido
continuam desconhecidos para 90% dos brasileiros, mas vale lembrar que 40% do
semiárido brasileiro está em território baiano, portanto, longe dos eixos da
transposição.
Quantos ainda falam da revitalização? Alguém tem
alguma notícia? O São Francisco continua em processo de extinção rápida e
fatal. Mesmo assim fala-se em projetos de 100 mil hectares de cana irrigada em
Pernambuco, 800 mil hectares de cana irrigada na Bahia, transposição para
outros estados e assim por diante.
Certamente voltará a chover, o rio vai recuperar
volume, mas as secas serão cada vez maiores e mais constantes. A NASA, anos
atrás, projetava que o São Francisco seria um rio intermitente em 2060.
Realizamos a façanha de antecipar a projeção em mais de 40 anos.
Diante do presságio da morte irreversível do rio,
o historiador Carlos
Bittencourt pergunta “o que se está transpondo então?”:
Transpõe-se a seca, transpõe-se a água que acaba
aqui para lá. Transpõe-se a barbárie do Sudeste ao Nordeste, aponta-se a proa
do navio para o buraco. Soluciona-se a causa aprofundando as consequências.
Círculo vicioso da acumulação de capital, da coisificação da vida e dos meios
da vida. A transposição do Rio São Francisco bebe da mesma água de sua
extinção.
Historicamente, a região Nordeste sempre sofreu
com a seca. A novidade agora é que o Sudeste, onde está a nascente do São
Francisco, também enfrenta grave escassez de água. Refletindo sobre o assunto,
a geógrafa e blogueira paulista Martina Sanchez conclui que é preciso perceber
que a natureza segue seu curso, seus ciclos e fases, eresta
ao homem se adaptar:
Algo está confundindo os climatólogos que não
acertam com as causas da seca prolongada no Sudeste neste ano (2014). Até as
nascentes do Rio São Francisco na serra da Canastra (MG) secaram. O nível dos
reservatórios da Cantareira, na cidade de São Paulo, está baixo e começa a
comprometer o abastecimento. É o aquecimento global! Dizem uns. Outros acusam
sobre o mau uso dos recursos hídricos, a falta de planejamento, o excesso
de consumo e desperdício. Todos têm razão e nenhum tem o direito de apontar o
dedo para o outro. Os cidadãos terão que aprender a conviver com os extremos
climáticos que não obedecem a decretos nem leis humanas.
Fonte: Global Voices
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