Seja bem-vindo à era da escassez.
por
Eduardo Shor*
Foto: Shutterstock
Pode ser que os leitores acabem antes do livro
impresso. O Orkut, a Petrobras, o futebol brasileiro, a vida como a gente
conhecia não existem mais. E os picolés? Viraram paletas mexicanas vendidas em
food trucks.
Você sabe da última? Entramos na era da escassez. O
mundo agora é assim. Está cada vez mais comum se falar na última. A
última gota, ponta, semente, vez que você viu uma estrela no céu na cidade
de São Paulo. Quando foi mesmo?
A água pode acabar. Existe gente que jura que dá
para ficar sem tomar banho. Mas uma pessoa de bem, um pai de família, uma mãe
de criança, empresária, conseguiria viver sem chocolate? Difícil. E o pior: a
produção de cacau não tem dado conta para tantos dedos querendo se lambuzar com
bombons, tabletes, cremes.
Onde estão os picolés? Saudades das velhas Kombi
que vendiam cachorro-quente. Raridade. Nas festas do interior, as barraquinhas
ofereciam pinga, marvada, imaculada, branquinha, bagaceira,
a-que-matou-o-guarda.
Hoje a cachaça só entra se tiver nome bonito, aliás
qualquer coisa só entra desse modo. O sujeito não sai de casa se não for para
conhecer um espaço diferenciado. E, em vez de enfiar o pé na jaca, mergulha os
calcanhares no leito de rúculas ao molho de iogurte, oréganos frescos e
damascos da Polinésia. É o pé na jaca gourmet, com o perdão da cacofonia.
O Orkut acabou; a Petrobras, dizem. Os
ascensoristas não estão mais dentro dos elevadores, substituídos por vozes
mecânicas. O Eike deixou a lista dos bilionários. E nem Clarice Lispector teve
um repertório tão vasto de frases para as redes sociais, da forma que querem
fazer você acreditar.
O livro impresso vai acabar algum dia? Pode ser que
os leitores acabem antes do livro. O mundo politeísta assistiu ao nascer do
monoteísmo, até que se declarou Deus morto, ou, quem sabe, ele nunca tenha
existido.
A crônica esportiva procura entender por que o
nosso futebol acabou. A extinção da paixão pela camisa, do improviso do craque
brasileiro. Os analistas do mercado querem descobrir por que a economia
desaqueceu. O PIB sumiu. A arara-azul e o mico-leão-dourado faz muito também
não aparecem por essas bandas.
A vida como a gente conhecia não existe mais. Ficou
nas fotografias, que de uns tempos para cá não desbotam. Permanecem coloridas e
vivas, como se o momento registrado tivesse acabado ontem ou uma hora atrás. O
clima mudou, as geleiras estão derretendo, os rios estão secando. Pode faltar
luz nos próximos meses.
Acabou o dinheiro – o meu, pelo menos. A paciência
da população, a vergonha dos políticos, a revolta junina, o espaço para tanto
silicone, o carnaval de outrora, o amor.
O amor acabou sem nem avisar com antecedência. Um
dia o homem acordou, pulou da cama e disse a ela: não dá mais. Logo os dois,
que tinham amado Paris, amado Veneza, amado a primeira vez que fumaram maconha,
amado aquele filme do Woody Allen. Amaram tanto tudo que faltou amor para
continuarem a se amar.
E não aconteceu só com eles. Falta de amor se espalha
que nem gripe. Atchim! Beija-se sem amor, casa-se sem amor, transa-se sem amor.
E os pais não veem a hora de devolver as crianças, tomarem de volta o pagamento
do parto. Chega-se a uma certa idade que a gente não tem mais saúde.
Acabou a atenção. Pessoas andam pela rua batendo a
testa, trombando em postes. Olha o celular, digita, esquece a vida. Um exército
de seres que estão aqui, mas não estão em lugar algum. Cabeças perdidas em
bate-papos, jogos, vídeos de sexo, piadas, notícias. Onde estará de verdade
toda essa gente?
Talvez seja por isso que se fale cada vez mais em
encontrar outros planetas, galáxias, estrelas. O dia não veio, o bonde não
veio, o riso não veio, não veio a utopia e tudo acabou e tudo fugiu e tudo
mofou, e agora, José? Esse planeta acabou, ou está acabando, anote aí, antes
que acabe a tinta da caneta, ou a bateria do seu computador.
Uma sonda acabou de pousar em um cometa pela
primeira vez, a Nasa anuncia para os próximos anos uma missão tripulada inédita
para Marte. Candidato, seu tempo acabou. A lei acabou no Brasil, acabou a
promoção no shopping, na 25 de Março, na Rua da Alfândega. Acabou a
privacidade, o Calendário Maia. Acabou o coletivo, agora cada um só quer saber
de si.
Não tem mais o que acabar por esses lados, vamos
acabar com o que a gente ainda nem conhece direito. O que pode ser destruído na
Lua? Em Júpiter? Saturno ainda perde seu anel em um assalto interestelar.
Enquanto houver esse texto é possível ter a garantia de que algo continua, a
esperança, mas nem isso. Acabou a linha, acabou o espaço, acabou o texto. Fim.
* Eduardo Shor é jornalista e autor do livro
Amor do Mundo.
Fonte: Página 22
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