sábado, 20 de junho de 2015

“Amigas legais” contra a violência machista na Índia.
A família de Phulkali Bai a torturou por unir-se à organização de mulheres Narmada Mahila Sangh (NMS), no centro da Índia, mas ela não se deixou intimidar. Foto: Stella Paul/IPS.

Por Stella Paul, da IPS

Betul, Índia, 10/6/2015 – Mamta Bai, de 36 anos, recorda claramente da primeira vez que a polícia foi à sua aldeia no centro da Índia: foi em dezembro de 2014, sua vizinha tinha ficado inconsciente após receber um golpe de seu marido alcoolizado, e ela precisou fazer um telefonema para a delegacia mais próxima. Os policiais retiraram o agressor de sua casa e perguntaram às mulheres presentes se queriam que ele fosse detido. A resposta em uníssono foi sim.

Mas primeiro pediram que o deixassem amarrado a um poste em meio à aldeia, no município de Betul. “Queríamos que todos vissem o que aconteceria aos maridos que agredissem suas mulheres daqui em diante”, afirmou Mamta Bai, que funciona como kanooni sakhi (amiga legal, em híndi) na organização Narmada Mahila Sangh (NMS). A agrupação, que ajuda as vítimas de violência machista a buscar justiça, está presente em 213 povoados do Estado de Madhya Pradesh, no centro da Índia.

Sabendo que o abusador passaria umas poucas noites na prisão e voltaria para casa e para os mesmos hábitos, as mulheres unidas conseguiram que o homem assinasse uma carta ao chefe de polícia se comprometendo a nunca mais voltar a bater em sua mulher. “Queríamos que aprendesse a lição. A detenção e a humilhação de estar atado a um poste à vista de todos lhe deu medo”, contou Santri Bai, também integrante da NMS. “Agora ele sabe, somos 42 mulheres dispostas a mandá-lo para a prisão se voltar a bater na esposa”, acrescentou.

A NMS trabalha nos municípios de Betul e Hoshangabad em Madhya Pradesh, um Estado com um grau de violência de gênero excepcionalmente alto, com 62% das mulheres vítimas de alguma forma de abuso, dez pontos acima da média nacional de 52%. Os abusos incluem violência sexual, violação marital, assassinato, socos, assassinatos por questões vinculadas ao dote e, no caso de mulheres acusadas de bruxaria, tortura e queimaduras. Entre 2013 e 2014, o Estado registrou dez mil atos de violência contra mulheres, quatro mil deles ocorridos em Betul.

A NMS foi criada em 2002, para ajudar as mulheres a conseguirem empoderamento econômico, não para frear a violência de gênero. Segundo a Comissão de Planejamento da Índia, 35% da população de Madhya Pradesh vive em condições de extrema pobreza, superando a média nacional de 25%. Isto é, 30 milhões de pessoas vivem com menos de US$ 1,25 por dia.

“Começamos a participar de reuniões e visitar nossas casas para discutir diferentes formas de renda e nos interessamos em assuntos familiares, como a educação dos filhos”, contou Asha Ayulkar, da aldeia de Chiklar, perto de Betul. “Os homens ficaram enfurecidos porque viram isso como um desafio à sua autoridade e uma quebra da tradição, e bateram nelas como castigo”, acrescentou.
Mulheres que integram a organização feminina Narmada Mahila Sangh (NMS) reunidas na aldeia de Borgaon, no Estado de Madhya Pradesh, centro da Índia. Foto: Stella Paul/IPS.

Em 2013, com nove mil integrantes, a NMS começou sua cruzada com o convencimento de que a situação das mulheres não melhoraria se não fossem atendidos ao mesmo tempo os valores patriarcais profundamente arraigados. O primeiro objetivo foi garantir a capacitação, já que muitas mulheres em áreas rurais mal têm educação formal, quanto mais conhecimento legal especializado.

A alfabetização em Madhya Pradesh gira em torno dos 70% de sua população, mas cai para 60% no caso das mulheres, o que tampouco reflete a realidade, pois muitas adolescentes costumam abandonar a escola antes de terminarem o secundário.

Com ajuda de organizações da sociedade civil, como a Prada, 30 integrantes da NMS se capacitaram em assuntos parajudiciais e depois se converteram em painelistas que capacitaram outras mulheres sobre leis e políticas vigentes e sobre como realizar uma investigação básica antes de recorrer à polícia. “Também aprendemos como falar a uma sobrevivente e ajudá-la, uma kanooni sakhi deve se reunir com ela a sós, olhar em seus olhos e ser firme, mas compreensiva”, explicou à IPS.

“Aprendemos sobre o Código Penal e seus artigos vinculados a tortura, agressão, violação e morte relacionada com o dote”, disse Ayulkar, que tem 50 anos e, apesar de só ter estudado até o sexto ano, atualmente é a especialista parajudicial mais respeitada do distrito e com êxito superior a 80% dos casos.

A iniciativa pode parecer pequena diante da generalização da violência machista neste país de 1,2 bilhão de habitantes. O abuso sexual e físico está muito sub-registrado em toda a Índia. Um estudo da revista American Journal of Epidemiology revelou que apenas 2% das vítimas denunciam casos de violência.

Parte da explicação pode ser a lamentável escassez de condenações. O Escritório Nacional de Registro de Delitos estima que apenas 30% dos casos acabam em alguma pena. Isto significa que sete em cada dez acusados ficam livres. E mesmo os condenados ficam livres poucos anos depois, ou, às vezes, até mesmo em poucos dias.

“A NMS capacita as mulheres sobre como realizar a denúncia, como pedir um advogado público, quando não podem pagar um, e como realizar um acompanhamento de seu processo mediante a lei de Direito à Informação”, explicou Mamta Bai à IPS. “Agora as mulheres registram cada caso”, disse Angana Gupta, diretora-adjunta da L&T Finances, uma das organizações associadas com a Prada. O aprendizado de questões legais foi acabou sendo a parte mais fácil. O mais difícil foi, e continua sendo, mudar os comportamentos e as atitudes sociais nas áreas rurais.

Ramvati Bai, da aldeia de Bakud, era uma viúva com dois filhos que teve de suportar durante três anos os abusos sexuais e as agressões de seu sogro, até que criou coragem para denunciá-lo, mas a polícia considerou que se tratava de um “assunto familiar’. Com ajuda da NMS, a polícia registrou a denúncia e deteve o homem. Mas a família se colocou contra Ramvati e a puseram para fora de casa. Felizmente, ela conseguiu refazer sua vida graças à ajuda dessa organização.

Porém, Nirmala Bai, de 28 anos, não teve a mesma sorte. Ela morreu em 2013, supostamente estrangulada por seu marido, que em seguida ateou fogo no cadáver. A polícia o deteve e o acusou de incitamento ao suicídio, mas lhe concederam liberdade condicional. Embora a NMS não tenha ficado parada e tenha procurado justiça para Nirmala, por fim teve que abandonar o caso porque a família dela se negou a depor como testemunha.

As integrantes da NMS não se deixam abater por esses reveses. Mantêm os programas de microcrédito e defendem quem necessita de sua ajuda. “Queremos uma vida digna e livre de violência”, destacou Ramvati Bai à IPS. “Não há nada mais importante do que isso”, enfatizou.


Fonte: ENVOLVERDE

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