quarta-feira, 29 de junho de 2016

Aprender com índios, uma boa experiência.
Menino Munduruku durante reunião do povo. Foto: ©Fábio Nascimento/Greenpeace

Por Washington Novaes*

Há alguns anos, o chefe indígena Atamai, que morava na aldeia waurá, no Xingu, deslocava-se, como passageiro de um carro, por uma via pública de Goiânia (episódio que talvez já tenha sido narrado neste mesmo espaço, mas que vale a pena rememorar). Em certo momento, voltou-se para o autor destas linhas e perguntou: “Por que caraíba (homem branco) cobre de asfalto todo o piso de ruas e não deixa lugar pra terra respirar?”. Foi-lhe dito que o asfalto servia para nivelar a terra, remover buracos e permitir mais velocidade aos veículos. Mais adiante, ao passar por uma lombada na pista, Atamai quis saber para que ela servia. E, ante a resposta de que servia para obrigar motoristas a reduzirem a velocidade, de modo a não ameaçar pedestres e evitar colisões, foi fulminante: “E por que caraíba, primeiro, cobre a terra pra aumentar a velocidade dos carros e, depois, constrói calombos no chão e obriga a reduzir a velocidade dos carros?”. Felizmente, chegávamos ao destino e ele ficou sem resposta.

Respostas como essa, capazes de esclarecer complexidades do nosso mundo, continuam sendo buscadas em todos os lugares, por estudiosos de todos os setores do conhecimento, além de fazerem parte dos questionamentos de todas as pessoas. Ainda há pouco tempo, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) lançou o livro Megatendências Mundiais 2030, em que reúne o pensamento de entidades e personalidades internacionais sobre “o futuro do mundo” daqui a uma década e meia. E ali está dito o que neste tempo deve moldar o panorama mundial nas áreas de população, geopolítica, ciência e tecnologia, economia e meio ambiente. “Muitos dos problemas que enfrentamos hoje é porque no passado não olhamos para o futuro no longo prazo. Ou não nos preparamos para evitar que ocorressem ou para que estivéssemos mais bem preparados para essa ocorrência”, escreveu a professora Elaine Coutinho Marcial, que organizou a edição (Eco-Finanças, 16/10/2015).

O pensamento e a ação concreta dos colonizadores, a pequena escala dos problemas, certamente, os levaram a desconsiderar o modo de se organizar e de viver das culturas indígenas em todo o território brasileiro. E chegamos aonde chegamos. O fato é que, como lembra o Ipea no livro sobre as megatendências mundiais, “o modelo econômico vigente, associado ao comportamento dos cidadãos e dos países, é agressivo ao meio ambiente, provoca a poluição do ar, desmatamento, perdas ecossistêmicas nos meios marinho e da costa, enfim, degradação, de forma geral”. Pensam os autores do livro que, “se não houver ruptura nos padrões de consumo e diminuição na geração de resíduos, esse modelo continuará conduzindo à escassez de recursos naturais nos próximos anos”.

É um bom momento, então, para que nos debrucemos sobre os formatos de vida entre povos indígenas – há muita documentação sobre o passado e ainda se encontram no Brasil cerca de 1 milhão de índios, de 305 etnias, falando 274 línguas em mais de 500 terras reconhecidas. No mundo são mais de 5 mil povos.

E, de fato, no Brasil as perdas são gigantescas. Produzimos mais de 250 mil toneladas diárias de lixo, que são inteiramente desperdiçadas. O lixo orgânico (metade do total) poderia ser reaproveitado de muitas formas, a começar pela compostagem que o transforma em adubo. Os resíduos da construção civil, dos quais quase nada se fala, têm um volume superior ao dos domiciliares. A reciclagem é ínfima. Valeria a pena, nesta hora, visitar uma aldeia indígena que, isolada, ainda mantenha os modos de vida dos antepassados – para ver se ali se produz lixo. Ou o que acontece quando uma aldeia cresce muito e decide se separar em duas, também para não ameaçar os modos de vida – e assim aconteceu, por exemplo, no Xingu, com os waurá. Também se poderá ver a questão do poder: o chefe não dá ordens; ele é o que mais sabe da cultura de seu povo e é procurado sempre para saber o que pensa – mas não dá ordens a ninguém. Cada morador da aldeia planta e colhe alimentos e pesca para os que com ele vivem. Mas, se alguém lhe der ordens, vai achar graça. O conhecimento é aberto: o que um sabe todos podem saber. São questões descritas e estudadas com muita competência por Pierre Clastres em seu livro A sociedade contra o Estado.

Mesmo que se saiba de tudo isso, continuamos a colocar como centro de tudo o cálculo do chamado Produto Interno Bruto (PIB) – a soma, em valores monetários, dos bens e serviços finais produzidos em certo período (ano, em geral) – e compará-lo com outro ano, ou com outro país. E isso determinaria se um país é rico, médio ou pobre. Não leva em conta nada do meio ambiente, nada da cultura. E isso tem implicações fortes na política e na relação entre países ou regiões.

Um país como o Brasil tem muitos privilégios – território continental (só na Amazônia, milhões de quilômetros quadrados), sol durante todo o ano, quase 12% dos recursos hídricos do planeta, biodiversidade extraordinária, clima ameno, mais de 7.300 quilômetros de costa marítima, possibilidade de matriz energética “limpa”, sem emissão de gases que acentuam mudanças climáticas, etc. Mas nada disso é considerado para o PIB. O desmatamento amazônico voltou a crescer no ano passado (474 quilômetros quadrados). Desperdiçamos uma fatia considerável dos alimentos que produzimos, embora tenhamos em torno de 40 milhões de brasileiros que vivem na pobreza extrema – a renda é fortemente concentrada. A população junta-se cada vez mais em grandes cidades, onde os problemas crescem exponencialmente. Multiplicam-se os conflitos com populações indígenas, quase sempre em disputa de suas terras.

É claro que não faz sentido propor que voltemos todos a viver como índios. Mas pelo menos veremos com clareza os nós que nos engasgam.

* Washington Novaes é jornalista.


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