segunda-feira, 29 de agosto de 2016

Teria o capitalismo matado a democracia?
Por Liliane Rocha*

Dēmokratía “governo do povo”. 

“Vivemos em uma democracia”, “Avançamos na democracia e não podemos regredir”. Em tempos de complexidade política, pressões da sociedade civil e um governo que tem sido fortemente questionado, frases como estas estão na agenda do dia a dia do brasileiro. E mais do que isso, a democracia como base fundamental para a promoção do desenvolvimento alcançado pelo país ao longo dos últimos anos. Essa linha de livre pensamento é quase unanimidade, mas o que você diria se eu te contasse que ao longo da história da humanidade nem sempre a democracia foi consenso entre os pensadores, filósofos e políticos? Pode ser difícil acreditar, mas grandes referências que tem norteado a reflexão e o imaginário coletivo tais como Platão, Aristóteles, Locke, Montesquieu e mesmo Rousseau não eram a favor da democracia. Simplesmente porque não consideravam que este sistema seria capaz de manter a ordem e a segurança tão necessárias a nossa convivência coletiva.

O que mencionei te surpreender, principalmente porque foi dito de súbito, por isso, voltemos alguns passos atrás e analisemos tanto a democracia como o desenvolvimento de forma gradativa e ao longo da linha do tempo.  Se hoje todos bradam a democracia como valor e base social, por vezes usando o termo a exaustão e mesmo esvaziando-o de sentido, nem sempre foi assim. O termo foi criado no século V A.C, na Grécia antiga, e significa em sua análise semântica “governo do povo” ou “poder que emana do povo”. Demos significa povo e cratos poder. Surgiu como uma definição oposta ao termo aristocrata “organização sociopolítica baseada em privilégios de uma classe social formada por nobres. Ou seja, um governo de poucos”.

Contudo, o entendimento de povo na Grécia antiga estava muito distante do que aplicamos na atualidade. Eram excluídos mulheres, estrangeiros e escravos (pobres). Neste sentido, já poderíamos fazer aqui uma crítica à democracia da época. No entanto, o que fazia com que filósofos como Platão e Aristóteles fossem contra a democracia, não era este aspecto da inclusão versus a exclusão que salta aos nossos olhos. E sim, eram contra a democracia, devido ao fato de acreditarem que esta não era a forma mais eficaz de se obter ordem social e segurança. Ambos os filósofos consideravam os regimes autoritários mais eficientes quando o assunto era a regulamentação social entre ricos e pobres, por isso defendiam a aristocracia ou a monarquia como regime adequado à melhor governança, gestão da sociedade e capaz de assegurar condições básicas de convivência social.

A partir do século XIX, a Revolução Francesa torna a difundir a democracia, desta vez fortemente atrelada à conceituação de Direitos Humanos, contudo o discurso permanecia longe da prática ou de se tornar uma realidade efetiva. Há inclusive referências que mencionam a democracia como “uma ditadura da maioria”. A expressão evidencia o pânico que havia (e há até hoje) entre as classes sociais mais abastadas de que o empoderamento da coletividade representasse a implantação de um governo autoritário conduzido pelo povo.

Contudo, para refletir a democracia e o capitalista tal qual temos hoje no Brasil e no mundo é essencial analisar também a influência americana sobre esse conceito ao longo do século XX. 

Principalmente porque ao longo destes anos os Estados Unidos porque certamente podemos afirmar que este país influenciou muito a estrutura política e social do Brasil. Neste sentido o documentário da BBC de 2002, “O século do Ego”, traz uma contribuição brilhante para este diálogo, pois traça uma linha do tempo associando a democracia à construção da sociedade americana.

Nos anos 20, Edward Bernays, sobrinho de Freud, sim o pai da psicanalise, era o Relações Públicas oficial do Governo Americano e clamava ter desenvolvido as técnicas, estimulando os desejos das pessoas e associando-os a produtos de consumo. Criava-se naquele momento um novo modo de controlar a força irracional das massas, conhecido como engenharia do consentimento. A democracia para ele era um conceito maravilhoso, mas ele não via as massas como tendo um julgamento confiável, por isso a massa tinha que ser guiada por cima.  “O que surgiu no século 20 nos EUA foi uma nova ideia de como lidar com democracia de massa. Ao centro estava o sujeito do consumo que não só fazia a economia funcionar, mas que também era feliz e dócil, criando assim uma sociedade estável. A noção fundamental de democracia é sobre mudar as relações de poder que dominaram o mundo por tanto tempo. E o conceito de democracia lançado pelos Estados Unidos nos 20 é sobre manter as relações de poder.” Século do Ego, 2002.

]O ápice desta concepção ocorreu em meados de 1936 quando Edward Berneys, desta vez contratado pelas grandes empresas americanas com o objetivo de deflagrar guerra ideológica ao New Deal, começou a trabalhar exaltando ligação entre a democracia e os negócios na América. Em 1939 na Feira Mundial de negócios, construiu ao centro um monumento enorme chamado DemoraCity.

Mas afinal, trazendo essa reflexão para o Brasil de 2015, após refletir a gênesis. Como anda a democracia na atualidade? Será que quanto mais avançada for uma economia, mais democrática ela tenderá a ser?

Para reforçar essa perspectiva, analisemos ponto a ponto o Brasil de 2015. O cenário já começa a ficar nebuloso quando falamos dos Direitos Civis, lembrando, propriedade, vida, liberdade e respeito. 

Neste aspecto o país está claramente em progresso, mas não consolidado, pois persiste ainda a problemática de qual a camada social a qual o indivíduo pertence, sendo quanto mais pobre mais seus direitos civis são fragilizados e desrespeitados. Certamente ainda não há educação, saúde e segurança para todos. A depender da cidade em qual o cidadão vive, da sua etnia, da sua renda e até do seu gênero, as vulnerabilidades em termos de direitos civis são gritantes.

Façamos um breve recorte de Direitos Civis para gênero (mulheres) e etnia (afrodescendentes). Segundo o fórum mundial dentre 189 países o Brasil ocupa a Brasil ocupa 62ª posição no Ranking de desigualdade de gênero do Fórum Econômico Mundial, 76% da renda dos homens, e se esta desigualdade permanecer a tal almejada igualdade chegará somente em 2095. Mulheres brasileiras ocupam 8,6% da Câmara dos Deputados. No Senado 16%. Em 2014 foram cerca de 480 mil denuncias feitas por mulheres que estão sofrendo violência doméstica são agressões físicas, violência psicológica, moral, cárcere privado e violência sexual. E a cada 12 segundos uma mulher sofre violência no Brasil.

Para afrodescendentes temos que no Congresso brasileiro temos 5% de negros. Segundo dados de 2010 há uma epidemia de morte de jovens negros no Brasil, pois apesar de negros/as comporem pouco mais da metade da população brasileira, eles representam 75% dos casos de homicídio no país. 

Sabemos que ainda hoje no Brasil a renda dos negros chega a ser 60% menor do que a dos brancos. 

Segundo o IBGE 2012, do total de 16 milhões de brasileiros na extrema pobreza, a grande maioria é negra ou parda.

Ainda no Brasil 0,9% mais ricos do País detêm entre 59,90% e 68,49% da riqueza dos brasileiros. E dados as notícias de corrupção que tivemos no país esse ano, a exemplo da Operação Lava Jato, podemos inferir que os detentores da riqueza do país tem negociado entre si, representantes do governo e das empresas, para manter os privilégios de poucos, em detrimento dos direitos de muitos, ou melhor, dizendo do povo.

Concluindo e reforçando, os dados históricos realmente elucidam o desenvolvimento capitalista como propulsor da democracia como forma de governo. E sim, temos no Brasil uma democracia que tem se fortalecido e efetivado ao longo dos anos. Todavia hoje, possivelmente não seja o fortalecimento do desenvolvimento capitalista que reforçará a democracia definida. Simplesmente porque o desenvolvimento capitalista enquanto crescimento econômico (sistema econômico baseado na legitimidade dos bens privados e na irrestrita liberdade de comércio e indústria, com o principal objetivo de adquirir lucro) tem servido aos interesses de poucos. E se persistimos nesta trajetória poderemos ter certeza que se o capitalismo ainda não matou deliberadamente a democracia, o fim está próximo.


Fonte: ENVOLVERDE

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