quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Brasileiros gastam cada vez mais com ensino fundamental.
Conclusão de tese do IE contraria interpretação mais simples dos dados demográficos


A despeito do envelhecimento da população e da queda na taxa de fecundidade, os brasileiros passaram, na década iniciada em 2000, a gastar cada vez mais dinheiro nos primeiros estágios da educação – ensino fundamental e médio – e cada vez menos no ensino superior, revela análise apresentada na tese de doutorado “Estruturas familiares e padrão de gastos em educação no Brasil – primeira década dos anos 2000”, de Maria Alice Pestana de Aguiar Remy, defendida no Instituto de Economia (IE) da Unicamp. A pesquisa foi orientada pelo professor Waldir Quadros.

A descoberta de Maria Alice, feita com base na aplicação de modelos estatísticos sobre as informações da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) e da Pesquisa de Orçamento Familiar (POF), contraria a interpretação mais superficial dos dados sobre gastos das famílias brasileiras com educação, no período: se a análise dos números for feita a partir da mera comparação entre a média de desembolsos com educação no início e no fim da década, o que se vê é uma redução tanto no valor médio despendido pelos domicílios quanto na proporção do gasto familiar global aplicado nesse serviço, que cai de 3,4%, na POF de 2002-2003 para 2,5% em 2008-2009, uma queda de 7,3% dos montantes absolutos.

“Mas aí as pessoas calculam o gasto médio das famílias com a educação, ou seja, o total gasto, dividido pelo numero de famílias, além de considerar famílias sem estudantes”, explicou a pesquisadora. “Só que você tem um outro fenômeno demográfico ocorrendo paralelamente, que é a proliferação do número de famílias, ou arranjos familiares”, disse. “Incluindo famílias formadas por uma só pessoa, ou casais sem filhos”. Na comparação entre as POFs realizadas no início e no fim da década, o aumento do número de famílias foi de 19%, ante um crescimento populacional de 8%.

Mais renda e menos filhos

“Conseguimos capturar, pelos dados, que há uma associação entre renda e despesas em educação: quanto mais rica a família, maior proporção de seu respectivo consumo é destinada a despesas com educação. As informações advindas da base de dados das POFs ainda mostram que, durante os anos 2000, a renda das famílias elevou-se, mas o crescimento de renda foi tanto mais intenso  quanto mais pobres os domicílios”, disse Maria Alice.  A renda captada pela POF advém sobretudo do trabalho, formal ou informal, e de transferências (aposentadorias, bolsa família, entre outras), representando 92,4% da renda total obtida pelas famílias. “Por outro lado, as famílias mais ricas estão muito menores que as famílias mais pobres. O processo de transição demográfica é mais rápido entre os mais ricos do que nas famílias mais pobres. Também é mais rápido nas regiões mais ricas do Brasil que nas regiões mais pobres”.

“Transição demográfica”, explica Maria Alice, segundo os demógrafos, é o nome dado ao fenômeno, observado inicialmente na Europa, mas que vem se espalhando pelos demais continentes, de queda na taxa de natalidade e aumento da longevidade. E é um processo pelo qual o Brasil vem passando, embora ainda conte com um “crescimento populacional inercial”, nas palavras da pesquisadora.

“Então você verifica, assim, um aumento enorme de gastos nessas famílias mais pobres, bem como nas regiões mais pobres”, prossegue ela. “O que acontece? As famílias mais ricas gastam um porcentual maior, gastam porcentualmente muito mais em educação, então o que elas deixam de gastar não compensa o que as famílias ou regiões mais pobres passaram a gastar a mais”.

Ações afirmativas

Ao isolar os fatores demográficos, Maria Alice encontrou, para famílias com características sociodemográficas idênticas, um aumento no gasto por aluno, com ênfase no ensino fundamental e médio, e queda nas despesas com educação superior. “O que a gente observa, comparando o início e o fim dos anos 2000? Que houve aumento no gasto para um aluno de ensino privado no nível fundamental e médio, e houve redução para o valor gasto com aluno em ensino privado superior”, disse ela. Segundo a análise apresentada na tese, no Brasil os gastos médios das famílias com ensino superior caíram 22% entre 2002-2003 e 2008-2009, enquanto que os gastos com educação básica tiveram alta de 3,5%.

As Unidades da federação onde as famílias passaram a gastar mais com educação básica foram Amapá (156%), Santa Catarina (148%) e Paraíba (70%). Já os que tiveram maior queda foram Amazonas (-38%), Roraima e Distrito Federal (em ambos os casos, -31%). Já as despesas com ensino superior caíram mais em Mato Grosso (-59%), Espírito Santo (-49%) e Distrito Federal (-46%).

Essa queda nos desembolsos com ensino superior ocorreu mesmo diante do grande aumento do número de alunos para essa etapa da educação, principalmente no setor privado, com o total de matrículas em cursos presenciais de graduação saltando de pouco mais de 3 milhões em 2001 para 5,4 milhões em 2010, segundo dados do MEC.

“Houve uma proliferação das instituições privadas de ensino de nível superior”, reconhece Maria Alice, “mas houve também dois elementos fundamentais: a proliferação de universidades públicas, com a criação de novas instituições de ensino superior federais, e as ações afirmativas” que contemplam bolsas de estudo e mecanismos de crédito estudantil. “Você tem um financiamento, no qual desaparece o gasto da família – quando aparece o financiamento do Estado, e o Estado passa a pagar para essa universidade. E depois a dívida do financiamento não aparece como gasto em educação, aparece como passivo da família”.

Ensino privado

Na comparação entre os dados de duas PNADs – de 2001 e de 2012 – a pesquisadora encontrou um movimento de fuga para o ensino fundamental privado em todas as faixas de renda, mas mais acentuado entre as parcelas mais pobres da população, com a proporção de matrículas na rede privada, entre os 10% mais pobres, passando de 0,9% para 2,4%. Nos 10% seguintes, o salto foi de 1,6% para 3,9% e assim sucessivamente.

“Dentre as principais contribuições do estudo, destaca-se a comprovação de uma migração de alunos da rede pública em direção à rede privada em todos os níveis de rendimento (das famílias) na educação básica, sobretudo na fundamental, ao longo do tempo”, diz a tese, em suas conclusões.
O trabalho prossegue: “Constatou-se também que a qualidade de ensino vem mostrando níveis bastante sofríveis, ainda mais para um país que está entre os dez que mais produzem no mundo, e esta percepção, de má qualidade, pode ter levado as famílias das camadas mais pobres a buscarem escolas privadas para seus filhos no momento em que se constatou a elevação de seus rendimentos. Entretanto, escola privada nem sempre é sinônimo de qualidade”.

“A gente supõe que haja uma percepção das famílias de que o ensino fundamental privado está associado à qualidade”, disse a autora. “Se a gente for pensar em ensino médio e fundamental, vemos que as famílias dizem que é a chance: as famílias põem os filhos na escola privada para, depois, conseguir uma vaga na universidade pública”.

Maria Alice cita os dados levantados na tese, principalmente o aumento dos gastos privados em ensino fundamental, para contestar a ideia de que o Brasil já investe o suficiente em educação, em termos de fração do PIB. Números da OCDE indicam, por exemplo, que Brasil e Alemanha aplicam proporções similares do Produto Interno Bruto no setor.

“Há pessoas que dizem que o Brasil já tem muito gasto, já dá um porcentual do PIB muito grande para a educação. Só que o perfil demográfico do Brasil não é igual ao da Alemanha, onde os casais quase não têm filhos”, afirmou. “A pirâmide etária deles é diferente da nossa”.

Qualidade 

A perspectiva de redução no número de crianças e jovens na população brasileira a médio prazo, disse ela, não deve servir de pretexto para a diminuição do investimento em educação, mas sim para uma mudança de ênfase, passando da construção de escolas para a conquista da qualidade.

“Primeiro, eu acredito que a educação fundamental tem de ser pública para todos os segmentos sociais”, disse. “Depois, a gente está muito aquém, em termos de qualidade. O fundamental se diz universalizado, mas nem isso é lá muito verdade em todos os recantos do país”. Ela lembra o papel da educação como geradora de oportunidades e estimuladora de talentos. “Meu mestrado foi sobre estrutura social. Na verdade, é a educação que distingue socialmente as pessoas”, disse.

“A oportunidade é fundamental para desabrochar as capacidades pessoais. Imagine se o Pelé nunca tivesse podido jogar futebol. É mais ou menos isso: imagine os valores que estamos perdendo”, disse ela, defendendo o investimento em qualidade na educação. “Você não precisa investir só na coisa material da escola, tem que investir na qualificação do professor e do aluno. O sistema precisaria de uma reformulação grande, com incentivos para as pessoas se aprimorarem”.

No texto da tese, a pesquisadora lembra que “na recente aceleração do crescimento econômico (2010), a percepção de grande parte dos empresários veiculada nos meios de comunicação era de falta de qualificação de mão de obra em todos os níveis. Será que isso não estaria associado à proliferação de cursos de má qualidade?”

A autora também relativiza a necessidade do uso exagerado da tecnologia em sala de aula: “qualquer que seja a escola, por melhor que seja, de âmbito público ou privado, jamais estará utilizando a tecnologia mais recente. Não é possível acompanhar a velocidade das alterações. Nesse sentido, uma boa formação na educação básica deve conferir ao estudante a capacidade de aprender a apreender, ou seja, de saber lidar com as constantes mudanças até no âmbito de trabalho. Esse é um pressuposto”.

Publicação
Tese: “Estruturas familiares e padrão de gastos em educação no Brasil – primeira década dos anos 2000”.

Autora: Maria Alice Pestana de Aguiar Remy.
Orientador: Waldir Quadros.
Unidade: Instituto de Economia (IE).
  • Texto:
CARLOS ORSI
  • Fotos:
Antoninho Perri
  • Edição de Imagens:
Diana Melo


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