quarta-feira, 13 de maio de 2015

Infância mercantilizada.
Por Lais Fontenelle Pereira –
Quebra de privacidade em escola famosa e avanço da propaganda infantil na rede alertam: obcecados pela conectividade, estaremos cegos ao vazio que ela pode causar?
“Internet, pais infantis e banalidades”. Esse é o título do artigo em que falei sobre minhas inquietações a respeito da relação que adultos e crianças têm mantido com as redes sociais e, principalmente, sobre os tênues limites entre o público e o privado. Passados pouco mais de seis meses, minha inquietação só aumentou. Ao ler sobre o caso do vazamento de anotações dos professores sobre alunos no Colégio Bandeirantes, notei como é urgente o debate sobre o tema – com o qual nenhum de nós, a começar pela família e a escola, está preparado para lidar.

Quais são os limites reais entre o que é público e o que é privado? Como transmitir esses limites e educar numa ambiência comunicacional e de consumo?

No final do ano passado, fui assistir ao filme do diretor canadense Jason Reitman, Homens, Mulheres e Filhos – baseado no livro homônimo de Chad Kultgen. Nele, o diretor fala sobre como estamos rearranjando nossas relações a partir da onipresença nas redes sociais. O vazio sentido por um casal; a sede de amor de uma garota anoréxica; o adolescente que vive num mundo de pornografia virtual, mas não consegue relacionar-se na vida real; mães que expõem ou superprotegem seus filhos nas redes – essas são algumas das situações que levam o espectador a repensar o uso das redes sociais, as relações humanas e o sentido de nossas vidas na era digital.

O filme traz um belo e triste selfie da sociedade contemporânea em que todos – adultos e crianças, homens e mulheres – são atravessados pela relação com as mídias e o consumo, demonstrando como podemos ser ao mesmo tempo tão obcecados com a conectividade e tão cegos quanto ao distanciamento que ela pode nos causar. O longa lembra Crash – No limite, não só pelo nó que dá na garganta, mas por trazer um roteiro em que os personagens se cruzam, aprimorado pelo recurso gráfico que leva à tela caixas de diálogos, barras de busca e até pop up´s – o que confere não só dinamismo quanto verdade à produção.

O drama incomoda e faz pensar, ao espetacularizar num pout-pourri as mudanças causadas pela tecnologia: de websites em que todas as perguntas erradas podem ser respondidas à facilitação da procura de afeto por desconhecidos, desvios gerados pelo excesso de pornografia e desperdício de tempo curtindo uma vida que não é a sua. Incluindo questões centrais como privacidade e qual a responsabilidade dos adultos na relação que as crianças têm estabelecido com a internet e redes sociais. Olhando para esta grande rede em que o mundo se transformou, as ideias de sociedade e interação social ganham um novo significado.

Youtubers mirins

Nesses tempos de consumo e conectividade temos também assistido, impunemente, a um crescente movimento de espetacularização de crianças nas redes sociais. Conhecidas e reconhecidas pelo mercado, as Youtubers mirins são pequenas celebridades que detêm canais no Youtube e perfis em diferentes redes sociais, comumente Instagram – e chegam a mais de 240 mil assinantes ou seguidores e impressionantes 91.974.702 visualizações de seus vídeos.

O conteúdo produzido, exposto e compartilhado por essas crianças vai desde merchandising e demonstração de produtos até criações originais como funk ostentação, receitas e dicas de culinária ou aulas de fitness produzidas pela mais nova blogueira de 9 anos – como apontado em uma entrevista da pedagoga Ana Lucia Villela no O Estado de São Paulo. Não temos como saber o que veio primeiro nessa história. Talvez os canais de celebridades mirins tenham surgido de maneira espontânea e, ao criar um público e uma rede de produtores de conteúdo, foram sendo procurados pelo mercado – que hoje enxerga as crianças como promotoras de vendas. Ou talvez os próprios pais tenham criado esses canais, como fazia no filme citado uma das mães, obsessivamente, para expor seus filhos.

A questão fundamental é: se tanto o Youtube quanto o Instagram não permitem o uso de suas redes por menores de 13 anos, como podem existir esses canais? Ou algumas famílias usam subterfúgios ou as próprias crianças omitem ou revelam mentiras sobre a sua idade. Dados da pesquisa Kids Online, de 2012, sugerem que esta prática é bastante comum: apenas 27% dos entrevistados de 9 a 16 anos declaravam informar corretamente a idade nas redes sociais. A maioria (57%) afirmou optar por idade falsa.

Além disso, observamos o crescimento de um modelo transmídia de publicidade direcionada a crianças que têm a internet como centro, o que traz à tona a necessidade de pensarmos em mecanismos eficazes para garantir proteção aos direitos das crianças contra abusos do mercado cometidos por marcas infantis em sites e redes sociais, ou ainda no caso dos Youtubers Mirins. O problema da relação das crianças com as redes não está mais restrito a questões ligadas à sexualidade ou à postagem de conteúdos privados ou impróprios, mas envolve hoje, também, abusos cometidos pela publicidade dirigida às crianças na internet.

Uma pesquisa recente da comScore, divulgada em janeiro de 2014, aponta que o número de crianças e adolescentes nas redes sociais brasileiras aumentou 118% entre 2012 e 2013, de 4,3 milhões para 9,4 milhões de usuários com mais de 18 horas mensais conectados. A pesquisa apontou também que, entre os jovens usuários de internet, 70% possuem perfil em alguma rede social. Mas, será que estão preparados para os conteúdos que irão ler, curtir, postar e compartilhar?

Surgem na internet cada vez mais portais voltados ao público infantil lançados por empresas que aproveitam o interesse das crianças por conhecimento, entretenimento e tecnologia para anunciar seus serviços/produtos por meio de conteúdo supostamente educacional e de entretenimento. Dessa forma, produtos alimentícios e brinquedos, por exemplo, são apresentados em meio a jogos, atividades e vídeos na forma de “advergames”, que disfarçam seu propósito mercadológico e marcam na memória das crianças a imagem da marca associada a conteúdos positivos.

Para exemplificar a importância da internet no cotidiano das crianças brasileiras, vale trazer ao debate dados da pesquisa Kids Online Brasil 2013, que incluiu pela primeira vez questões sobre publicidade e consumo. A pesquisa apontou que, entre as crianças e adolescentes usuários da internet, 77% possuíam perfil no Facebook; e, desse montante, 61% afirmavam já ter visto publicidade. Há também um indicador sobre a interação desses usuários com a publicidade: 57% diziam já ter curtido uma publicidade na rede social que mais usa, 36% diziam ter compartilhado, 21% descurtido e 20% declaravam ter bloqueado um anúncio.

Não temos, portanto, como deixar de debater a comunicação mercadológica direcionada à criança, sua relação com a internet e a finalidade social da rede – isso além de todos os impactos psicossociais que o uso inadequado das redes pode causar. Não quero aqui demonizar a tecnologia e o uso das redes sociais, até porque os inúmeros avanços tecnológicos alcançados por nós, humanos, trouxeram muitos benefícios, como a agilidade na troca de informações, a possibilidade de conexão com o mundo e muito mais. Mas isso não quer dizer que não devamos repensar a forma como temos nos relacionado com esses aparatos e espaços virtuais e a forma como o mercado tem se apropriado deles para falar diretamente com os pequenos.

Outra questão de suma importância nesse debate é a privacidade da rede e quais os limites entre público e privado — como apontado pelo fato recentemente ocorrido no Colégio Bandeirantes em São Paulo. Ao entrar numa área de acesso “privado ou restrito” dos professores no site do colégio, as crianças encontraram anotações sobre sua personalidade, comportamento, conflitos familiares e outros apontamentos, alguns francamente antiéticos e desnecessários ao conhecimento de qualquer um — a começar pelos alunos. Como bons adolescentes experimentando a transgressão, os alunos compartilharam imediatamente seus achados, e ainda criaram um tutorial para quem mais quisesse acessar os dados.

A informação então vazou e em poucos minutos fez o estrago necessário: a máscara dos professores caiu e aproximou de alguma forma essas gerações, mostrando que em tempos de internet e redes sociais pouca coisa passa ilesa: bastam alguns cliques. Mas o fato é que ninguém se mostrou preparado para lidar com o ocorrido – comunidade escolar, família ou alunos. Somente o diálogo com eles, nativos digitais, mas ainda imaturos para lidar com questões de privacidade, poderia transformar o ocorrido em oportunidade para levantar questões de extrema importância hoje.

Cabe então a nós, pais, mães e acima de tudo cidadãos repensar a relação que temos e permitimos que nossas crianças estabeleçam com a internet, o consumo e as redes sociais. Depois de um ano da promulgação da Resolução 163 do Conanda (que trata da regulação da publicidade dirigida às crianças) e do Marco Civil da Internet, devemos continuar a fazer nosso papel de fiscalizar os abusos cometidos na rede e fora dela. Podemos assim manter a noção constitucional da sociedade civil como agente promotora de políticas públicas, por meio não somente de mecanismos de consulta e de conselhos de direitos, mas de fiscalização e de denúncias.

Acima de tudo, porém, desejo que possamos estabelecer mais relações reais, de modo a poder educar as crianças para o exercício da cidadania em espaços virtuais, onde o convívio social é difuso. Que possamos entender melhor as dimensões de liberdade e segurança na internet, para que seu uso se dê de forma ética e cuidadosa por adultos, professores, pais, crianças e mercado. É preciso repensar o sentido da vida que vivemos para ser possível vislumbrar tempos melhores, em que professores escrevam coisas mais poéticas e éticas sobre seus alunos, mãe e pais não permitam ou almejem que seus filhos se tornem celebridades e o mercado respeite os direitos das crianças.

* Lais Fontenelle Pereira, mestre em Psicologia Clínica pela PUC-Rio e autora de livros infantis, é especialista no tema Criança, Consumo e Mídia. Ativista pelos direitos da criança frente às relações de consumo, é consultora do Instituto Alana, onde coordenou durante 6 anos as áreas de Educação e Pesquisa do Projeto Criança e Consumo.


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