quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Alimentação escolar fomenta agricultura familiar.
Meninos e meninas entre cinco e sete anos, durante almoço no refeitório da escola João Caffaro, no bairro Engenho Velho, que tem a maioria de sua população na pobreza, na cidade de Itaboraí, Estado brasileiro do Rio de Janeiro. Foto: Mario Osava/IPS.

Por Mario Osava, da IPS – 

Itaboraí, Brasil, 10/11/2015 – “Essa lei deveria estar em vigor desde o fim da escravidão, que jogou nas ruas os escravos sem lhes dar condições de trabalhar e produzir, transformando-os em semiescravos”, afirmou o agricultor Idevan Correa. A elogiada lei só foi aprovada no Brasil em 2009. 

Ela obriga que ao menos 30% do dinheiro que as prefeituras recebem do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação sejam destinados à compra de alimentos produzidos pela agricultura familiar local.

A fórmula é uma dessas coisas que, depois de feitas, parecem óbvias, naturais. Além de garantir um mercado importante para os pequenos produtores, “melhorou a qualidade da alimentação”, disse à IPS Jaqueline Lameira, mãe de dois estudantes e representante das famílias no Conselho de Alimentação Escolar de Itaboraí, que controla a oferta e a qualidade das refeições.

Esse município do Estado do Rio de Janeiro tem 230 mil habitantes, dos quais cerca de 11% são rurais, e já superou o mínimo legal. Mais de 40% dos desjejuns e almoços fornecidos nas escolas municipais utilizam alimentos da pequena agricultura, afirmou Inaiá Figueiredo, responsável técnica de nutrição da Secretaria de Agricultura, Abastecimento e Pesca do município. Eram apenas 7% quando tomou posse o atual prefeito, em 2012, apontou à IPS.

A alimentação oferecida se diversificou, com incremento de legumes e verduras, incluindo produtos locais típicos, muito nutritivos mas pouco consumidos, e a inclusão mínima de três vegetais em cada refeição, detalhou Inaiá. “Para sobremesa há frutas, nunca doces, e nos sucos não entra açúcar, mas mel produzido localmente”, acrescentou.
A cozinheiro Penha Maria Flausina abre os sacos recém-entregues por agricultores familiares, com frutas e hortaliças, na Escola Municipal João Baptista Caffaro, com 500 alunos no primário, em um bairro carente na cidade de Itaboraí, no Estado brasileiro do Rio de Janeiro. Foto: Mario Osava/IPS.

“As crianças comem de tudo, gostam de repetir os pratos. Tem uma que só vem à escola para comer”, disse à IPS, entre risadas, Penha Maria Flausina, a merendeira da Escola João Baptista Caffaro, em um bairro pobre de Itaboraí. Ela mostra na despensa o milho, o quiabo, as abóboras e as frutas recém-chegadas.

Tudo isso é resultado de um longo processo iniciado em 1986, com a primeira Conferência Nacional de Alimentação e Nutrição, repetida em 2004, 2007, 2011 e agora, ao longo da primeira semana deste mês, em Brasília, com dois mil participantes.

Em 1993 foi criado o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), com representantes da sociedade civil e do governo. Em 2006 o Congresso aprovou a Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional. Três anos depois, tendo esta lei como marco, foi aprovada a norma que vincula o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) à agricultura familiar, após enfrentar duras resistências no parlamento, relatou à IPS o economista Francisco Menezes.

“O enorme mercado de alimentação escolar, hoje constituído por 45 milhões de alunos, era dominado por empresas, algumas contratadas pelas prefeituras para todas as escolas”, pontuou Menezes, que, como presidente do Consea entre 2004 e 2007, teve papel fundamental na elaboração e votação dessas leis. Com fornecimento monopolizado é comum “maior preço e menor qualidade”, afirmou.

A discussão do projeto de lei demorou três anos e foi obstruída por parlamentares interessados nesse mercado ou financiados pelas empresas fornecedoras, que no final “continuaram fortes”, mantendo 70% das vendas, embora como participação máxima. Nesse país de 206 milhões de habitantes, a efetividade da lei é irregular. “Há municípios que a cumprem, outros não, e há alguns no sul do Brasil que alcançaram 100% de fornecimento pela agricultura familiar”, destacou Menezes, admitindo que, no entanto, também ocorrem fraudes.

Os conselhos municipais “fortes” inibem irregularidades, mas também estão sujeitos a pressões. Por isso, “tudo depende da agricultura familiar organizada em associações e cooperativas, de maneira que, se um produtor falhar, outros associados garantirão o fornecimento”, opinou o economista. De todo modo, a lei é vital, porque “converte o programa em política de Estado, dificultando retrocessos”, destacou.

Correa, o produtor que gostaria de ter essa lei desde o fim da escravidão, que no Brasil ocorreu em 1888, a considera “inteligente”, inclusive ao fixar em 30%, no mínimo, a parte da agricultura familiar. “É um primeiro passo experimental, os pequenos não poderiam produzir muito mais de uma hora para outra, mas isso deve aumentar aos poucos”, ponderou o agricultor, que também preside a Associação de Produtores Rurais do IV Distrito de Itaboraí e é herdeiro de cem hectares que seu pai recebeu da reforma agrária, na década de 1950.

Ele também concorda com o limite anual de R$ 20 mil para a venda de cada produtor ao município, embora isso o tenha prejudicado este ano, quando poderia ter superado sua cota, com a venda de milho, feijão, batata e frutas. “Melhor assim, mais agricultores podem vender, se aumenta muito a cota, caberá a poucos”, afirmou à IPS.

“No começo do atual governo municipal, em 2012, apenas nove ou dez produtores participavam do programa de alimentação escolar, agora são 54”, disse à IPS a agrônoma Ana Paula de Farias, assessora técnica da Secretaria de Agricultura, Abastecimento e Pesca da prefeitura de Itaboraí. No município há cerca de 300 propriedades rurais, mas a maior parte se dedica à pecuária. O problema para ampliar os fornecedores é que muitos não possuem a documentação exigida, ressaltou.

Além disso, foi necessária assistência técnica para uma produção orgânica, ou de forte redução no uso de agroquímicos, e uma adaptação às especificidades da alimentação infantil, com uniformização das goiabas em tamanhos pequenos, para oferecer uma fruta a cada criança, sem necessidade de dividi-la em pedaços.
O líder camponês Idevan Correa examina um de seus laranjais. Ele decidiu voltar a plantar laranja graças à lei que obriga que pelo menos 30% dos alimentos consumidos nas escolas procedam da agricultura familiar local. O município de Itaboraí foi famoso por suas laranjas até que uma praga reduziu sua produção. Foto: Mario Osava/IPS.

Segundo Correa, “a lição mais importante desse aprendizado foi plantar sem químicos agrícolas. Vamos aprendendo e nos adequando ao programa. Antes se plantava muito para ganhar mais, sem condições de competir com as grandes empresas. Agora se busca mais qualidade e maior cuidado, porque se trata de alimentar as crianças locais”.

A venda para as escolas melhorou muito sua vida, embora tenha um teto. Isso porque o programa paga “preços de supermercado”, de varejo, sem custos de transporte, porque a prefeitura oferece seus caminhões, enquanto no grande mercado é preciso se submeter aos intermediários que pagam menos e cobram custos, afirmou.

Essa experiência brasileira de aliar agricultura familiar e alimentação escolar já é exportada para vários países africanos e da América Latina, como Mali, Moçambique, Senegal e Bolívia. Também é um dos modelos da Frente Parlamentar Contra a Fome da América Latina e do Caribe, uma iniciativa que surgiu em 2009 com apoio técnico da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO).

De fato, essa legislação brasileira será analisada durante o VI Fórum de Frentes Parlamentares Contra a Fome, que acontecerá em Lima, no Peru, entre os dias 15 e 17 deste mês, com presenças de legisladores da região e convidados da África e Ásia.

O Programa de Aquisição de Alimentos, baseado em outra lei de 2003 e destinado à rede de instituições assistenciais, também se espalha pelo exterior, como exemplo de política pública de sucesso de duplo beneficio: amplia a segurança alimentar e também fortalece a agricultura familiar.

Segundo Menezes, a segurança alimentar é importante também para desenvolver “uma visão intersetorial”, envolvendo vários ministérios, como os de Agricultura, Saúde e Educação, que costumam atuar isoladamente.


Fonte: ENVOLVERDE

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