segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Feminismo ajuda na resistência à seca.

Por Mario Osava, da IPS – 

Caraúbas, Brasil, 15/12/2016 – “A horta mudou minha vida”, contou Rita Alexandre da Silva, no Assentamento Primeiro de Maio, onde 65 famílias conseguiram, em 1999, terras para plantar, neste município do Rio Grande do Norte. Ela integra o Grupo de Mulheres que se organizou em 2001 e adotou o lema Unidas Para Vencer, com o objetivo de ter suas próprias atividades produtivas, reafirmar seus direitos e enfrentar o machismo.
Um grupo de mulheres se organizou para cultivar coletivamente hortaliças e frutas para consumo da comunidade do Assentamento Primeiro de Maio e venda na feira de Caraúbas, cidade próxima, no Nordeste brasileiro. Foto: Mario Osava/IPS

“Eu vivia sozinha entre a casa e a lavoura, sem direito de sair, ir à cidade. Com a horta comecei a ir para a cidade vender nossos produtos na feira, com a oposição do meu marido e do filho mais velho”, disse Rita à IPS. “Trazer dinheiro para casa quando o marido estava doente” ajudou a dobrar a resistência dos homens. “Hoje, meu filho, já casado, tem outra atitude em relação à sua mulher”, ressaltou.

Com 60 anos e três filhos adultos, Rita divide com outras cinco mulheres do Assentamento o cultivo de coentro, alface, cebola, tomate, mandioca, papaia, coco e outras hortaliças e frutas, em um hectare de terra coletiva do povoado. A dificuldade é o transporte dos produtos até a cidade de Caraúbas, a 22 quilômetros de distância. Elas pagam cerca de US$ 25 por um veículo contratado e também custeiam a manutenção e limpeza do ponto de venda.

“Não dormimos na véspera, acordamos às duas da madrugada para estar na feira todos os sábados”, contou Antônia Damiana da Silva, de 41 anos e com quatro filhos. Mas “nossa vida mudou para melhor, comemos o que produzimos, sem venenos, e somos outras pessoas, mais livres, decidimos o que fazer e comunicamos aos maridos”, acrescentou.

O assentamento reuniu famílias camponesas que viviam nos arredores, sem terra própria. Foi resultado da ocupação de uma área improdutiva por duas vezes. A primeira tentativa, em 1997, durou 18 dias e foi frustrada por uma ordem judicial de despejo, em resposta a uma queixa apresentada pelos proprietários. Dois anos depois, uma nova ocupação conseguiu que o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) destinasse a terra aos camponeses, entregando a cada família 13 hectares e boas moradias na agrovila.
Parte da agrovila onde vivem as 65 famílias do Assentamento Primeiro de Maio, um oásis de vegetação em meio à grave seca provocada por cinco anos quase sem chuvas na Caatinga, o bioma semiárido exclusivo do Nordeste brasileiro. Foto: Mario Osava/IPS

Também conseguiram uma área comum para a criação de animais, a sede da associação comunitária e a horta. A agrovila identifica no Brasil os assentamentos rurais estabelecidos em áreas isoladas, nos quais moradias e instalações comunitárias e de serviços se concentram nas proximidades das terras, uma solução adotada dentro da reforma agrária no país, que dá aos camponeses vantagens urbanas, como escola, postos de saúde e, em alguns casos, saneamento.

A seca, que já dura cinco anos no interior semiárido do Nordeste brasileiro, se nota na vegetação cinza, aparentemente morta, de quase toda a Caatinga, um bioma exclusivo do Brasil. Mas suas árvores baixas e retorcidas, que na verdade estão mais para arbustos, costumam ficar verdes algumas horas depois de uma simples chuvinha.

O Assentamento Primeiro de Maio surge na paisagem quase como um oásis, pelo verde de suas árvores e pela horta, que atrai pássaros e outros animais. Os cultivos tradicionais das famílias, em geral de milho e feijão, se perderam devido à seca. Mas a horta continua produtiva, irrigada com água de um poço e manejada segundo princípios da agroecologia, com diversidade de semeadura e melhor uso de todos os recursos naturais, incluída a palha.

Para isso, contam com assistência técnica e apoio da Diaconia, uma organização social sem fins lucrativos composta por 11 igrejas evangélicas, de forte atuação no Nordeste brasileiro. A renda proporcionada pela horta empodera as mulheres, especialmente nessa época de agricultura tradicional inviável. Mesmo assim o Grupo, inicialmente composto por 23 mulheres, diminuiu para seis, que se revezam para cuidar da horta e vender a produção na feira de Caraúbas.
Na agrovila do Assentamento Primeiro de Maio, a horta continua produtiva, irrigada com água de um poço e manejada segundo princípios da agroecologia. Foto: Mario Osava/IPS

As dificuldades de comercialização e o machismo dentro de casa, tão presente quanto pouco mencionado, estimularam as deserções. A horta irrigada sem desperdício de água é uma forma de produção promovida pela Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), movimento que congrega cerca de três mil organizações sociais do Nordeste, como associações variadas, sindicatos, entidades religiosas e não governamentais.

Convivência Com o Semiárido é sua orientação básica, em oposição à velha política oficial de “combate à seca”, que acumulou fracasso após fracasso ao construir grandes represas, aquedutos e canais que não oferecem soluções à população mais vulnerável, os camponeses pobres e dispersos. O Assentamento Primeiro de Maio foi uma das oito experiências visitadas por participantes do Encontro Nacional da ASA, que reuniu cerca de 500 pessoas entre os dias 21 e 25 de novembro em Mossoró, cidade a 80 quilômetros de Caraúbas.

“Sem feminismo não há convivência no semiárido”, afirmam os integrantes da ASA, ao explicarem seu apoio ao Grupo de Mulheres e a outras iniciativas em favor da igualdade de gênero nas comunidades rurais. “As tecnologias sociais” impulsionadas por essa convivência são, em geral, abraçadas com mais determinação e rapidez pelas mulheres.

Damiana, por exemplo, conta com um arsenal de recursos no quintal dos fundos de sua casa para afirmar que desfruta de “uma vida maravilhosa”. Um biodigestor alimentado com fezes de seus pequenos animais lhe garante gás para seu fogão. No povoado há outras dez casas com essa “tecnologia”, que consiste em um recipiente fechado hermeticamente onde fermentam dejetos orgânicos até produzir gás metano e fertilizante natural.

O “bioágua”, uma cadeia de filtros que limpa a água usada em sua casa permite a reutilização na horta e no pomar. Além disso, ela cria peixes em um pequeno tanque de três metros de diâmetro. A espécie escolhida é tilápia-do-nilo (Oreochromis niloticus), proveniente do rio Nilo, muito produtiva na piscicultura.
Contraste entre o verde da horta cultivada por mulheres do Assentamento Primeiro de Maio e a seca ao redor, no Rio Grande do Norte. Foto: Mario Osava/IPS

Vanusa Vieira, de 47 anos e dois filhos, é outra integrante do Grupo que cultiva a horta coletiva, embora reconheça que gosta mais dos animais. “Adoro criação, não consigo viver sem animais, cuido deles desde a madrugada até a noite”, explicou à IPS, em uma área com aves, bodes e uma vaca. 

“Aprendi com meu pai e minha mãe, que tinham gado e galinhas”, acrescentou. Agora que tem uma casa com um grande quintal, pode ter suas criações.

Mas ela paga o preço dessa paixão. Com a seca, teve que reduzir seu rebanho. O milho aumentou muito e a água escasseia, pontuou. O mel, que era outra produção importante e está parado porque as florestas estão secas e sem flores, “nos ajudou a comprar uma caminhonete para a família”, contou Vanusa.

Os pequenos animais, como bodes e cabras, que conseguem sobreviver com alimentos e água limitados, constitui, de todo modo, um recurso que ajuda a conviver com as prolongadas secas como a que afeta o Nordeste do país desde 2012. Ajuda a paliar essa situação o fato de as famílias da agrovila receberem um pequeno subsídio do programa Bolsa Família. Além disso, alguns homens trabalham como diaristas para aumentar a renda diante da queda da produção em suas terras.


Fonte: ENVOLVERDE

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