quarta-feira, 5 de julho de 2017

Fracionamento da produção em escala global mascara danos ambientais, aponta pesquisa.
Estudo está fundamentado em conceitos como “neoextrativismo” e “comércio ecologicamente desigual”

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A ideia de que as economias desenvolvidas passam por uma fase de “desmaterialização”, concentrando-se em atividades criativas e de serviços que consomem pouco material e são pouco agressivas ao meio ambiente, como pesquisa, design e vendas, é uma espécie de ilusão proporcionada pelo fracionamento da produção industrial em cadeias globais, e mascara o dano ambiental e social produzido nos países onde são extraídas as matérias-primas, diz a pesquisadora Beatriz Macchione Saes. Ela é autora da tese de doutorado “Comércio ecologicamente desigual no século XXI: evidências a partir da inserção brasileira no mercado internacional de minério de ferro”, defendida no Instituto de Economia (IE) da Unicamp.

“Na medida em que as economias avançadas especializam-se em etapas localizadas nas duas pontas das cadeias de produção, baseadas em ativos intangíveis (pesquisa, desenho, marketing etc.), o peso material de suas economias se reduz em relação ao PIB, mas a captura da maior parcela do valor adicionado das cadeias mantém padrões de consumo elevados, baseados em estoques materiais ‘ocultos’ em outros países”, diz a introdução da tese.
A pesquisadora Beatriz Macchione Saes, autora da tese: “A ausência de visões e modelos de desenvolvimento alternativos contribuiu para reforçar o caráter estrutural do comércio ecologicamente desigual Norte-Sul”

No desenvolvimento da tese, Saes se vale de conceitos como “comércio ecologicamente desigual” e “neoextrativismo”. “A ideia de comércio desigual tem várias décadas”, disse ela. “Seus propositores, como Celso Furtado, discutem a deterioração dos termos de troca: pensam nos preços e na relação dos preços dos produtos industrializados e das matérias-primas, e como essa relação, ao longo do tempo, tende a produzir preços mais favoráveis aos produtos industrializados”, num desequilíbrio entre países desenvolvidos e países periféricos, fornecedores das matérias-primas.

“O comércio ecologicamente desigual parte daí mas adota outra perspectiva, pensando muito mais a questão ambiental e material, não monetária”, explica a pesquisadora. “Creio que um dos primeiros autores a levantar essa ideia foi Stephen Bunker [sociólogo americano, autor do livro ‘Underdeveloping the Amazon’, ou ‘Subdesenvolvendo a Amazônia’, falecido em 2005]. Ele estava estudando a Amazônia brasileira e falando, bom, a gente não precisa olhar muito os preços, mas apenas olhar de uma perspectiva material e energética, e é possível ver que os países produtores de matérias-primas alimentam o metabolismo social global e particularmente dos países centrais ”.

“Metabolismo social”, diz Saes, é o fluxo energético e de material das economias, o que consomem para produzir seus bens finais. “A finalidade dos países produtores de matérias-primas seria alimentar esse metabolismo social de economias desenvolvidas, e isso levaria a uma dificuldade de desenvolvimento desses países, agravada pela ausência de um poder político mais forte, que absorvesse benefícios do comércio internacional. É nos anos 80 que surge essa discussão do comércio internacional numa perspectiva de fluxo de materiais, não só de dinheiro”.

A tonelada de minério de ferro que efetivamente cruza a fronteira rumo aos países desenvolvidos, exemplifica a pesquisadora, demanda muitos outros recursos do país de origem que são mobilizados para produzi-la, como água e perda de biodiversidade. “A partir dos anos 90 essa ideia começa a se consolidar na chamada pegada ecológica, ou pegada material, que é o que mais discuto no meu trabalho: cada produto final produzido, que existe por causa desse material que passa a fronteira e deixa uma marca no país original, requereu uma grande quantidade de material” que acaba não entrando na conta de quem enxerga a “desmaterialização” das economias desenvolvidas.

Neoextrativismo

Já o termo “neoextrativismo” aparece no contexto de uma crítica aos governos latino-americanos ditos progressistas, surgidos a partir do início deste século, que estimularam a produção e exportação de commodities. “Em termos estruturais da economia, esses governos atuam muito mais no sentido de estimular setores primários do que outros setores mais complexos, e nessa medida alguns autores vão falar que se trata de um neoextrativismo, alguns falam em ‘neoextrativismo progressista’”. A socióloga argentina Maristella Svampa vai se referir a num “Consenso das Commodities”, num paralelo ao Consenso de Washington dos anos 1980.

Mas se esse novo “Consenso” permitiu à América Latina aproveitar o boom das commodities e deu aos governos mais à esquerda a oportunidade de investir em programas sociais, ele também deixou para trás grandes passivos ambientais, problemas sociais envolvendo povos indígenas e populações deslocadas, e representou uma “integração subordinada” nas cadeias globais de produção. 

“Subordinada no sentido de exportar produtos primários e não buscar avançar em etapas que geram maior valor adicionado nessas cadeias”, diz Saes.

Em sua tese, a pesquisadora descreve o desenvolvimento da mineração de ferro no Brasil como um processo neoextrativista. Diz o texto: “O modelo ‘neoextrativista’ foi evidenciado pelas disputas em torno da legislação ambiental brasileira, em que prevaleceu o ‘interesse nacional’ como defendido pelo setor minerário, a despeito de outros interesses e valores concorrentes à mineração. Assim, a ausência de visões e modelos de desenvolvimento alternativos contribuiu para reforçar o caráter estrutural do comércio ecologicamente desigual Norte-Sul”.


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