quinta-feira, 27 de julho de 2017

“Você já está indo embora? Esse não é o horário de saída das domésticas”.
Nos últimos dias as redes sociais têm polemizado o caso da professora que foi “confundida” com uma faxineira. Luana Tolentino caminhava pelas ruas de Belo Horizonte quando foi abordada por uma senhora branca que perguntou se ela fazia faxina. “Você faz faxina? Não, faço mestrado. Sou professora” é a frase que viralizou nas redes sociais. Mas o que está por trás deste episódio? Sim, o racismo.

O que causa incredulidade na senhora envolvida no caso da docente é o fato de que apesar de a cada dez brasileiros, três serem mulheres negras, os números no mercado de trabalho não exprimem esta realidade, sobretudo nos cargos de gestão. Os afrodescendentes ocupam apenas 4,7% dos cargos executivos, segundo levantamento do Instituto Ethos, no Perfil Social, Racial e de Gênero das 500 maiores empresas do Brasil e suas ações afirmativas.

Neste Dia Internacional da Mulher Negra Latino Americana e Caribenha, criado para fortalecer e estimular a reflexão sobre a condição dessas mulheres, o Instituto Ethos conversou com Liliane Rocha, fundadora e CEO da Gestão Kairós, associada Ethos, que desenvolve trabalhos voltados à inclusão e sensibilização para promover a diversidade no ambiente corporativo.
Liliane Rocha

Qual o maior desafio enfrentado pela mulher negra no mercado de trabalho atualmente?

Liliane Rocha: Considerando que as mulheres negras não são uma massa única e uniforme, sempre acho esta questão complexa. Vamos lembrar que existem mulheres negras e PcDs, negras e LGBTs, negras e jovens ou idosas. De toda forma, se formos analisar a questão da mulher negra em geral, os estudos apontam que caso continuemos no mesmo ritmo de ações afirmativas e movimentação social, mulheres negras demandarão mais anos por equidade salarial do que mulheres brancas. Além disso, as mulheres negras estão em maior percentual entre os desempregados e no final da linha quando olhamos para faixa salarial por grupos. Detalhando: homens brancos ganham mais, depois mulheres brancas, homens negros e no final da linha mulheres negras. Precisamos nos lembrar que no Brasil foram cerca de 380 anos de escravidão, para cerca de 129 anos de histórico de abolição, ou seja, 1/3 do tempo. Por isso, é obvio que a herança do racismo permanece de forma introjetada na sociedade.

O que precisa ser feito para que o Brasil tenha mais CEOs negras, como você e a Rachel Maia, da Pandora?

Liliane Rocha: As ações necessárias para mudar essa realidade são diversas. Precisam ser coordenadas com esforços do primeiro, segundo e terceiro setor e demanda a participação de toda a sociedade. De toda forma, para ser pragmática e deixar uma luz no final do túnel, o primeiro passo é atuar em educação para a diversidade, neste ponto me refiro a ensino formal, em escolas públicas e particulares desde a infância. E também em governos e empresas. Focar em captar, reter, desenvolver esta parcela da população, bem como, atuar na cultura organizacional por meio de Programas de Diversidade que foquem na quebra de paradigmas e ampliação de conhecimento é fundamental.

As cotas em universidades públicas federais completam 5 anos, além disso o Prouni também contribuiu com um contingente de mulheres negras que passaram a ter acesso à graduação. Ainda assim, qual o argumento utilizado pelo setor corporativo para a desigualdade de gênero e racial, principalmente em cargos de gestão?

Liliane Rocha: O modus operadis atual é tão intrínseco que por vezes percebo que o mercado não se dá ao trabalho de elaborar justificativas, as coisas simplesmente são como são. De toda forma, quando há alguma tentativa de justificar o injustificável os argumentos são de que “não há negros (as) capacitados”, “não há negros (as) nesta área de atuação”, “não há negros (a) oriundos nas faculdades de primeira linha que queremos nesta organização”. Ou ainda, em uma tentativa desesperada de se eximir “negros, mulheres negras, não têm interesse em trabalhar neste setor empresarial, nesta área, etc”. Além daquela falácia de que as mulheres não querem ascender, pois priorizam equilíbrio de trabalho e vida, como se os homens não tivessem esta demanda também. São conceitos, pré conceitos, vieses que precisam ser desfeitos, descontruídos para que possamos construir algo diferente. Sendo este algo o conceito de valorização da diversidade como valor humano e de vantagem competitiva. Ressalto que existem algumas empresas que são referência e têm realizado um trabalho forte e consistente no tema, inclusive parceiras da Gestão Kairós que admiro muito. Também é preciso atentar para o diversitywashing – lavagem da diversidade (termo que se refere a maquiar uma situação). Empresas que se posicionam em comunicação com ênfase, mas ainda precisam avançar na captação, retenção, desenvolvimento e cultura organizacional relacionada a públicos diversos, em destaque aqui mulheres negras.

O olhar pejorativo e associação de mulheres negras ao subemprego e ao serviço doméstico ainda persistem, sobretudo por parte dos contratantes?

Liliane Rocha: Está visão é bem pessoal, mas creio que sim. Certa vez no horário de almoço, com roupa executiva, fui almoçar na casa de uma amiga que mora em um prédio de luxo. Mesmo estando com vestimenta social, quando eu estava saindo para ir embora, uma funcionária do prédio me parou e disse: “Você já está indo embora?”, respondi: “Como assim, se já estou indo embora?”. Ao que ela contestou: “esse não é o horário de saída das domésticas”. Enfim, sem demérito nenhum em ser confundida com doméstica, uma função essencial, digna e até, equivocadamente, muito desvalorizada no Brasil, questiono por que uma mulher negra em um determinado contexto obrigatoriamente deve ser vista como doméstica, vendedora…sendo que sabemos que existem diversos perfis e fenótipos de pessoas nas mais diferentes funções em nossa sociedade? Nas empresas, acredito que o ritmo é o mesmo. Se o contratante tem em mente a percepção de que mulheres negras estão sempre ligadas ao trabalho braçal, como poderá contratá-la como gerente? E como diretora? Cria-se uma barreira invisível, mas que de tão real, quase se pode tocar.

“Se o contratante tem em mente a percepção de que mulheres negras estão sempre ligadas ao trabalho braçal, como poderá contratá-la como gerente? E como diretora? Cria-se uma barreira invisível, mas que de tão real, quase se pode tocar”.

Qual o principal motivador para a criação da Gestão Kairós?

Liliane Rocha: Ao longo de 13 anos em grandes empresas nacionais e multinacionais no Brasil e na América Latina, inclusive na posição de gestora, tive oportunidade de aprender, encarar desafios, implantar do zero áreas de Sustentabilidade, Responsabilidade Social e Diversidade. Participei de reuniões com acionistas, CEOs e líderes nacionais e internacionais. No entanto, já de dentro das empresas eu percebia que eu havia construído uma jornada e um legado que poderia ser disseminado em larga escala com mais empresas, em novos contextos, gerando mais impacto. Por isso, em janeiro de 2015 abri a Gestão Kairós consultoria de Sustentabilidade e Diversidade, comecei a dar palestras, aulas em faculdades, escrever livros e trabalhar de todas as formas possíveis para apoiar empresas, governos e pessoas a construir novos caminhos e processos mentais que contribua para uma forma de pensar e atuar mais sustentável e inclusiva. Recentemente lancei o livro “Como ser um líder inclusivo”, pela editora Scortecci, no qual aprofundo de forma didática e simples nestes temas.

De acordo com o Perfil Social, Racial e de Gênero das 500 maiores empresas do Brasil e suas ações afirmativas mais de 55% dos brasileiros são afrodescendentes, mas apenas 4,7% ocupam cargos executivos. Como a Gestão Kairós atua junto aos clientes a fim de reverter este cenário?

Liliane Rocha: Parabenizo ao Ethos pela elaboração do Perfil, utilizo como base há muitos anos e considero este material excelente. Respondendo à questão, sendo uma profissional com MBA Executivo em Gestão da Sustentabilidade e mestranda em Gestão de Políticas Públicas, ambas pela FGV, há uma perspectiva intrínseca de gestão do conhecimento, indicadores, processos, metas e foco para resultados em todos os trabalhos que realizamos na Gestão Kairós. Entendo que aprofundar o conhecimento sobre referências do mercado no Brasil e no mundo, estudos setoriais, legislação, projetos de lei tramitando, dados e indicadores nacionais e globais de vantagem competitiva, somados ao mergulho no entendimento da cultura, documentos, projetos, realidade e indicadores da própria empresa é o melhor caminho para construir a estratégia da diversidade em uma empresa. A partir destas ações é possível criar um Programa consistente, customizado a realidade especifica do contexto (neste sentido não há receita de bolo) para apoiar a empresa a se tornar mais inclusiva, portanto mais justa e mais competitiva.

Por Rejane Romano, do Instituto Ethos


Fonte: ENVOLVERDE

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