quarta-feira, 18 de abril de 2018


A luta por um bosque no meio do concreto e asfalto.

Por Vagner Luis Camilotti*
Pense em um dia quente de verão, de sol de rachar a cabeça, o corpo quente, aquela sensação desconfortável do sol e do calor no corpo que se esgota fisicamente e você ainda tem que andar quadras e quadras até o teu destino. Agora lembre da sensação de quanto chegas numa rua arborizada, com aquela sombra que refresca o corpo – a diferença de temperatura pode chegar a cinco graus –, na qual o corpo se sente revigorado e que quer evitar o sol a todo custo agora ao sentir o frescor da sombra e sem também aquele brilho ofuscante da rua e da calçada. Esse é um exercício simples que tenho certeza ter sido vivenciado por qualquer pessoa.

Com isso em mente, às vezes soa inimaginável para alguns que se precise de argumentos para se preservar pedaços de uma natureza já em frangalhos. Para outros, ainda mais desconcertante é a ideia de que as únicas áreas verdes urbanas ainda passíveis de contribuir para a qualidade de vida estejam sob o risco de serem transformadas em estacionamentos, indo na direção oposta de movimentos de redução do uso de carros e combustíveis fósseis e da recomendação da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura) para o plantio de bosques urbanos com o fim de tornar as cidades mais sustentáveis, agradáveis e resilientes às mudanças climáticas. Surge a questão de quando o interesse privado deve superar o interesse coletivo, uma vez que estamos falando de uma área privada que já até ganhou de seus vizinhos o nome carinhoso de Bosque Betânia, em São José dos Campos (SP).

A visão da importância do bosque, uma área de 8,496 m2, tem sido resumida na discussão burocrática do corte de 430 árvores, sendo 274 de espécies nativas e 156 de espécies exóticas e de que todos os requisitos legais foram atendidos, como o plantio de 2,7 mil mudas em uma área de 16 mil m2 de fazenda da própria empresa. Toda a complexidade das relações sociais e ambientais envolvidas na causa assim são analisadas pela empresa e pelos órgãos licenciadores do município e do Estado.

Nisso, ignoram-se fatos como a saúde e bem-estar humano e da fauna que lá reside e utiliza para se perpetuar em um ecossistema duramente impactado como é o ambiente urbano. Áreas como essa em questão servem como amortecedores do impacto da urbanização sobre a biodiversidade e mesmo para a saúde das próprias pessoas. Tornam-se refúgios em meio à adversidade para ambos, fauna e humanos, sem esquecer, lógico, das próprias espécies vegetais reduzidas na discussão a “430 indivíduos”. Deixa-se de fora desse debate todas as demais espécies e indivíduos menores que não entram no que se chama de medida de diâmetro à altura do peito (DAP) que se considera nesses inventariamentos, que em geral é 5 cm de diâmetro. Tudo o que não tiver esse diâmetro não entra na contagem. Se não for espécie lenhosa também, como bromélias, orquídeas, outras epífitas, herbáceas etc. não entram na contagem. No fim, acabam sendo muito mais do que as 432 árvores que serão suprimidas, talvez sejam mais de mil indivíduos e tantas outras espécies subvalorizadas meramente por uma questão legal.

Fauna
No tocante à fauna, também não se sabe quem por lá anda. Vê-se comentários nas redes sociais de jacus, gambás, esquilos, espécies mais simbólicas e mais facilmente observáveis. Porém, as menores espécies, principalmente de aves, acabam passando despercebidas até em função do pequeno conhecimento popular sobre a existência de muitas dessas. Por exemplo, em um estudo que venho realizando no Parque Vicentina Aranha, o número de espécies chegou a 80. Oitenta espécies que usam o parque para se alimentar, reproduzir ou mesmo como um ponto de parada no movimento que fazem pela área urbana. O mesmo deve ocorrer com o bosque da Betânia. É uma área considerável com um dossel bem formado quando vista por imagens aéreas e que aparenta, por fotos, ter uma estrutura vertical muito funcional para a reprodução e permanência das espécies de aves. Essa área provavelmente está servindo para manutenção de muitas espécies animais no ambiente urbano circundante e, num processo conhecido como metapopulações, indivíduos de uma espécie podem usar o local para se reproduzir e depois vagar pela área urbana colonizando outras áreas verdes e mesmo recolonizando a área em questão. Assim, indivíduos do bosque da Betânia podem acabar por enriquecer o Vicentina Aranha, por exemplo, e vice-versa, já que o corredor de árvores das vias urbanas cria essa conectividade para muitas espécies que consigam se movimentar nesses ambientes.

Isso, no entanto, diz respeito ao que ocorre para os processos ligados à biodiversidade. E o que diz respeito à nós, seres humanos? Se o poder público tem interesse em vários aspectos do bem-estar social, deve saber que áreas verdes urbanas são essenciais para a qualidade de vida de uma cidade. 

Numa simples pesquisa no Google aparecem milhares de estudos científicos sobre o tema e cidades mais avançadas em termos de gestão urbana e qualidade de vida já possuem projetos para enriquecer o espaço urbano com verde ao invés do cinza.

Serviços ambientais
Quando se ignora os processos ecológicos locais na tomada de decisão e se segue cegamente uma lei que ignora tais processos e permite que uma área seja suprimida e compensada por outra localizada em certos casos até a dezenas de quilômetros de distância, perde-se fatores que são responsáveis por condições de ambiência locais e que não poderão ser compensados de outra forma.

A falta de visão de empresários e políticos – e mesmo da população em geral – do que se conhece por sistemas complexos (um ambiente urbano é um sistema complexo) é que mostra que não há uma compreensão desses atores sociais das condições que temos hoje no planeta, condições que permitem a vida e que são dependentes dos elementos nele existente no presente e mesmo em função de elementos que existiram no passado. Ou seja, temperatura, padrão de chuvas, ventos, por exemplo, são dependentes da existência de todo o complexo de interação entre os elementos vivos (plantas, animais, bactérias, fungos) e o ambiente físico (águas, rochas, atmosfera etc.). Essa relação é sintetizada na famosa Teoria de Gaia. Dessa maneira, quando se mexe em qualquer um desses elementos, todo o sistema é afetado e nele há o que se chama de limiares de mudança – ou até em que ponto se pode mexer sem que ocorram mudanças drásticas no sistema e que resulte em condições diferentes das que vivenciamos hoje (ver o caso da Amazônia). As florestas, por exemplo, são essências na regulação climática e do ciclo hidrológico. Nesse sentido, pode-se pensar que suprimir uma pequena área como essa do bosque da Tívoli pode não ter efeitos consideráveis no todo, mas terá sim num contexto de microescala, ou melhor, no microclima local do bairro e em outros fatores que discorro abaixo.

Quando se fala em ambiente urbano, alguns conceitos – se exótica ou nativa – podem e talvez precisam deixar de ser importantes quando analisadas as funções sistêmicas que desempenham no ambiente. Se a espécie em questão é exótica ou nativa na hora de decidir pelo corte ou não, num contexto urbano essa questão não deveria ser tão relevante para se decidir o fim da árvore (especialmente se não for uma espécie exótica considerada invasora), mas sim a função que aquele indivíduo está desempenhando no ambiente. Essa é uma opinião pessoal baseada no conhecimento de processos ecológicos e de conservação de espécies da biodiversidade e que deveria entrar na pauta de discussão sobre a legislação dos ecossistemas urbanos. No bosque da Tívoli, uma proporção considerável é exótica (eucalipto) e isso tem sido usado como argumento a favor do corte na área. No entanto, o papel que esses eucaliptos desempenham na ambiência da área acaba sendo negligenciado pelo simples fato de ser um eucalipto. Em termos de serviços prestados, nesse caso em particular, os eucaliptos estão prestando tanto quanto as nativas.

No contexto geral, o bosque com suas diferentes espécies e indivíduos, contadas nas suas 432 previstas para corte e mais as não contatas, podem estar contribuindo para reduzir a temperatura em seu entorno em até quatro graus se comparado com bairros desprovidos de vegetação pela liberação de vapor de água, sombra provida e pela absorção de raios solares (70-80%), além de contribuírem no controle de águas pluviais. Contribuem da mesma forma exóticas e nativas para a filtragem de material particulado emitido nas vias públicas pelos veículos – a área está junto ao anel viário e próxima à Dutra – e também para abafar o som dos carros. Além disso, estima-se que são necessárias 130 árvores com 30 anos para fixar os 4.500 kg de CO2 que produziu apenas um carro que percorreu seus 200.000 km e que quanto mais velha a árvore, mais ela absorve CO2. Embora os efeitos possam ser meramente locais, os ganhos são sociais e abrangentes. Basta ver a relevância do Parque Vicentina Aranha e do Santos Dumont, que além de servirem de refúgio para a população Joseense, também embeleza a cidade e o bairro onde se encontram e, de uma forma que pode ser positiva ou negativa, contribuem para a valorização dos imóveis da região (de 10 a 15% de acréscimo no valor do imóvel).

Saúde
Uma área verde vai além de benefícios ambientais. Morar a uma distância de 300 m de áreas verdes parece ter benefícios significativos para as pessoas. Estudos apontam que a presença de árvores nas vias urbanas e áreas verdes diminuem a obesidade (já que as pessoas se sentem estimuladas a praticarem exercícios físicos) e também o uso de antidepressivos; mulheres grávidas tendem a ter uma pressão sanguínea menor e crianças a ter menores chances de alergias e problemas comportamentais. A simples presença de árvores próximas de escolas e hospitais e vistas de suas janelas faz com que os alunos aumentem o seu rendimento escolar e que pacientes se recuperem mais rapidamente de cirurgias.

A redução da poluição atmosférica – responsável por mortes que ultrapassam aquelas por água contaminada e doenças infecciosas – pela retenção de material particulado nas folhas, ramos e troncos das árvores pode resultar numa economia de US$ 60 milhões em custos de saúde pública. A lista de doenças que podem ter seus desenvolvimentos amenizados pela presença de áreas verdes é enorme. Os efeitos positivos vão além e podem fazer com que as pessoas tenham uma resposta positiva equiparável a se sentir sete anos mais jovem ou mesmo ter a percepção de bem-estar equiparável a um aumento de 10 mil dólares no rendimento anual – elas se sentem mais felizes apenas vivendo em uma rua arborizada. Como disse Marcos Buckeridge (USP), “se uma pessoa viver em uma região arborizada, provavelmente terá o tempo de vida prolongado”. Isso leva à conclusão de que plantar árvores no meio urbano é uma medida básica de saúde pública e há argumentos de que parte dos fundos necessários para arborização urbana poderiam vir do setor da saúde como um investimento de médio a longo prazo em prevenção dessas doenças.

Segregação urbana
A SOS Mata Atlântica aponta que 72% da população brasileira (~145 milhões de pessoas) vivem nas cidades da Mata Atlântica e que em torno de 90% dessas pessoas residem na área urbana. No entanto, há uma relação perversa no ambiente urbano (não exclusivo apenas no Brasil): pessoas com menor renda e geralmente negras residem em áreas com menor arborização nas ruas e tem menos acesso às áreas verdes urbanas. Tanto é um fato global que a presença de áreas verdes e ruas arborizadas pode ser considerada como uma proxy de riqueza ao se avaliar a qualidade de vida nos bairros de uma cidade. Assim, além das periferias sofrerem com a falta de acesso a um sistema de saúde de qualidade, ainda sofrem os efeitos físicos e psicológicos de um ambiente insalubre.

Esse é um assunto sério e que é deixado sempre em segundo ou terceiro plano no planejamento urbano. É sério quando se observam os dados referidos ao longo desse texto. Como escreveram Marcia Hirota e Evangelina Vormittag, “uma política bem feita na área ambiental combate a poluição e ajuda a promover estilos de vida mais saudáveis nos nossos centros urbanos”. O uso de bicicletas, por exemplo, é limitado no verão pelo calor excessivo das vias urbanas associado à limitada malha ciclo-viária das cidades. Uma cidade mais verde e mais conectada à natureza tende a prosperar mais por todos os benefícios listados e muitos ainda nem compreendidos e que parecem levar a uma melhor integração e redução nas inequidades sociais e de saúde.

No fim, todo esse movimento em relação ao Bosque da Vila Betânia não está questionando apenas ou mesmo a legalidade da ação. A princípio, sendo proprietários e apresentando todos os documentos e exigências necessárias, legalmente a empresa pode fazer o que bem entender com a área. O que está sendo discutido é a ética e a moral do ato e o papel que o poder público tem em mediar tais intervenções no meio urbano quando ele deveria primeiro pensar nas questões sociais de bem-estar da população como um todo antes dos interesses privados, como bem deixou claro Flávio de Leão Bastos Pereira ao dizer que o “interesse particular não pode prejudicar o coletivo”.

É necessário que desse movimento social em prol do bosque nasça e permaneça um engajamento social na busca de melhorias das condições da arborização urbana. Há iniciativas já na cidade de grupos que se reúnem no final de semana para plantarem árvores em parques e vias urbanas, inclusive com o aval da prefeitura. Há nisso uma oportunidade latente nos próprios cidadãos para que o poder público possa e deve aproveitar para engajar e envolver as pessoas na governança do espaço comum e descentralizar o encargo de manutenção do verde urbano e ir ao passo de cidades como Paris com o seu projeto de cidadão-jardineiro. Oportunidades e modelos para isso existem.

No momento, o poder público municipal parece ser incapaz de gerir adequadamente e valorizar a questão da arborização urbana, possuindo uma legislação criticada e desatualizada, um manejo de podas inadequado e que põe em risco a segurança dos próprios cidadãos, sem contar o déficit estimado de mais de 400 mil árvores na cidade. Uma cidade mais florida e verde é uma necessidade, não um luxo, e cabe ao poder público alavancar essa mudança e levar São José dos Campos para a vanguarda das cidades que investem em qualidade de vida, tendo em vista a se preparar para as possíveis mudanças previstas para o clima (com pesquisas sobre o tema geradas no próprio município pelo INPE). O que é necessário para e o como construir essas iniciativas são perguntas que vêm depois da principal: Quando é que o poder público colocará a arborização urbana também no primeiro plano de decisões para a habitabilidade da cidade?

* Médico Veterinário, Me. em Ecologia, Dr. em Ciência do Sistema Terrestre (INPE).


Fonte: ENVOLVERDE

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